15 de maio de 2020

CRM na INSTRUÇÃO DE VOO


O pequeno Cessna 152 subia lentamente, procurando atingir os 2.000ft de altura para começar as manobras de treinamento. A maior preocupação do aluno iniciante era manter a velocidade correta. Foi quando o motor parou de funcionar. O silêncio inesperado e repentino foi interrompido apenas pela voz firme e confiante do instrutor: “Está comigo!”. Tendo assumido os controles e realizado os procedimentos previstos na cabine, sem resultado, o instrutor percebe que a última opção é um pouso forçado. A aeronave se estabiliza no planeio enquanto o instrutor procura o local mais adequado para o pouso

Com menos que dez horas de voo totais na sua caderneta, o aluno apenas observa os acontecimentos, mas tem certeza que o “Ás” sentado no outro assento sabe sobre aquela pequena pista de terra que está ficando para trás, a esquerda deles. Logicamente deve haver alguma razão para o instrutor ter rejeitado esta opção. O aluno ainda pensa em perguntar, mas acaba se calando para não perturbar a concentração do instrutor, que está ocupado e totalmente absorto em salvar suas vidas. O Cessninha termina se acidentando em um campo arado, a menos de duas milhas da pista que o aluno tinha visto. Não houve danos pessoais, mas a aeronave sofreu avarias graves. Ao saírem do avião, ilesos, o aluno comenta:

- Poxa vida, que susto, hein! Ainda bem que saímos inteiros!
- Rapaz, é pena que não tinha um lugar melhor. O avião não aguentou o tranco – explica o instrutor.
- Bem, eu não entendi porque viemos para cá. Eu teria pousado naquela pistinha ali atrás.
- Que pista? - pergunta o surpreso instrutor.
- Aquela que estava bem debaixo de nós quando o motor parou.
- Você quer dizer que tinha uma pista bem embaixo de nós e você não falou nada?

          O Instrutor está compreensivelmente chateado, mas não percebe que ele, não o aluno, é o maior responsável pela comunicação a bordo não ter funcionado. Embora, historicamente, os acidentes com aviação leve não sejam analisados desta forma, este é um cenário clássico de falha de gerenciamento de cabine. O instrutor deixou de utilizar um recurso disponível: o outro tripulante. O acidente, entretanto, começou muito antes do motor parar. Um mês atrás, na tentativa de impressionar o aluno com seu grande conhecimento e autoconfiança, o instrutor criou um clima onde só ele falava e o aluno apenas ouvia, estabelecendo um desnível de autoridade muito elevado na cabine. Obviamente, o aluno não vai nem pensar em interferir nos procedimentos do instrutor, porque acha que ele está sempre certo.

A verdade é que, em se tratando de coordenação de tripulação, o ambiente na nacele de um Aeroboero ou de um Cessna 152, em voo de instrução, pode estar muito defasado do que acontece no cockpit de um jato comercial de 200 toneladas. Mas isto pode ser mudado.

É cada dia mais evidente que as tripulações bem sucedidas em situações de emergência são aquelas que, além do profundo conhecimento técnico, convivem em um ambiente onde a comunicação é estimulada e aberta, onde existe troca de informações. O comandante ainda é o responsável pela decisão final, mas todo o grupo deve colaborar nesta decisão. O comandante deve reconhecer que ele pode aprender com os demais tripulantes tanto quanto os outros tripulantes aprenderão com ele. Um dos maiores problemas no gerenciamento de cabine ocorre quando o comandante não tem confiança na capacidade profissional do outro tripulante. Em consequência, tende a tomar para si todas as tarefas e fica tão ocupado em voar o avião que deixa de enxergar o cenário geral, aumentando a margem de risco. Esta postura dificulta a aplicação dos conceitos do Gerenciamento de Recursos de Tripulação (CRM – Crew Resource Management) na relação instrutor-aluno, pois o instrutor pode presumir, por exemplo, que o aluno dificilmente terá alguma informação válida que ele já não saiba.

O treinamento do CRM procura diminuir a incidência de falhas humanas na operação de uma aeronave. Estas falhas humanas envolvem, entre outros, problemas de comunicação, priorização inadequada de tarefas na cabine, perda de consciência situacional e, principalmente, falhas de julgamento e decisão. Como estes problemas são comuns a todo tipo de voo, é importante que os conceitos do CRM sejam praticados desde o início da instrução, pois eles serão aplicáveis em toda a vida do piloto. Quanto mais cedo eles aparecerem na formação, mais facilmente serão absorvidos. Como, então, se poderiam utilizar os conceitos de gerenciamento de recursos durante a instrução de voo?

O treinamento de CRM tem várias vertentes, mas aqui vão apenas algumas sugestões que talvez possam aumentar a eficiência e a segurança tanto da instrução básica quanto do novo piloto em formação.

- Estabeleça um ambiente de comunicação aberta na cabine. Um aluno em instrução pode estar ansioso e, algumas vezes, inseguro. Estas circunstâncias são barreiras à comunicação com o seu instrutor. Converse com o seu aluno antes da primeira decolagem e torne claro que você deseja e espera que ele fale sobre suas idéias e dúvidas durante o voo. Se ele perceber que a velocidade está baixa, ele pode falar. Se observar algum tráfego, você quer saber. Se o aluno sentir-se desconfortável com alguma manobra, que fale. O treinamento de CRM sempre enfatiza que, independente do nível de experiência do outro piloto, ele pode ser o único que tem a informação necessária para salvar a sua vida. Não tenha receio de deixar o aluno falar. Isto não diminui a sua autoridade como instrutor, mesmo porque a decisão final é sempre sua.

- Permita-se estar errado. Instrutores talvez se sintam constrangidos quando realizam incorretamente alguma manobra. Afinal, estão ensinando e não poderiam fazer nada menos do que o perfeito. Mesmo assim, se você entrou baixo em uma aproximação de pane simulada, admita a sua falha claramente para o aluno e arremeta. A maioria dos acidentes aéreos, seja da aviação geral ou da aviação comercial de grande porte, é causada por falhas de julgamento do tripulante. Todos nós cometemos erros, mas dificilmente um acidente é resultado de uma única decisão incorreta. O grande problema está em não admitirmos uma falha, pois a probabilidade de tomarmos uma decisão errada em seguida é muito maior. Não admitir o erro desencadeia uma sequência de julgamentos falhos. Ensine ao aluno a  reconhecer seus erros e tomar decisões para diminuir as consequências destes erros o mais cedo possível. Não crie na mente dele a figura do piloto infalível. Isto não existe.

- Delegue. Na medida em que as habilidades do aluno aumentam, transfira parte da carga de trabalho para ele, de forma coerente com o seu novo nível de habilidade. Ao dividir as tarefas com o aluno, você alivia a sua carga de trabalho e pode se concentrar no cenário geral do voo.

- Procure saber o que o aluno está pensando. Muitas vezes, um piloto comete erros porque está aplicando procedimentos a uma situação que não é exatamente a que está acontecendo. Não são seus procedimentos que estão errados, mas a sua percepção. Peça ao aluno para ele próprio comentar o que acha que está acontecendo. Isto aumentará a participação dele, seu aprendizado e facilitará ao instrutor identificar porque o aluno está errando e orientá-lo. Ao identificar melhor a situação, ele com certeza vai se desempenhar melhor. Se você apenas criticá-lo, ele não vai entender porque seus procedimentos não estavam dando certo.

- Resolva os conflitos através de uma verificação externa. Se o aluno acha que o controlador  de voo falou 3.000ft e você tem certeza que foi 6.000ft, verifique a autorização. Por uma questão de princípios, não confie apenas na autoridade das pessoas para resolver uma dúvida, especialmente se for você próprio. Pilotos experientes também cometem erros. Mesmo que você só erre uma vez em 1000, esta pode ser a vez que você está errado. É assim que os acidentes acontecem: uma vez em 1000.

- Adote uma norma de conversação na cabine. As fases de voo de alta carga de trabalho, geralmente decolagens e aproximações, devem exigir a atenção total do tripulante. As grandes empresas aéreas adotam a política de “cabine estéril”, onde, abaixo de 10.000ft, não se permite qualquer tipo de atividade ou conversa que não seja relacionada com a operação da aeronave. Logicamente, não vamos utilizar este parâmetro para uma instrução básica, mas podemos adaptar esta filosofia à nossa realidade, identificando as situações que exijam maior atenção do tripulante como, por exemplo, o circuito de tráfego. Nesta hora, a prioridade é voar o avião e observar o tráfego. Guarde o “bate-papo” e outras tarefas secundárias para mais tarde.

- Faça uma avaliação do voo de forma construtiva. Se o aluno tentou se matar no último pouso e quis te levar junto, critique o pouso, não o aluno. Se você disser “neste pouso, arredondamos alto e o nariz correu para a esquerda por causa do vento de través”, isto será bem mais eficiente do que dizer “ô cara, você não consegue mesmo fazer isto direito, não é?” Lembre que o aluno já estará bastante chateado com a manobra mal feita. Não piore as coisas ainda mais transformando sua crítica da manobra em um julgamento pessoal. Esta postura afasta o aluno e diminui o seu rendimento.

- Estimule o aluno a estar sempre à frente do avião durante o voo, a estar preparado para o próximos passos, a se antecipar para os acontecimentos previstos, a verbalizar os procedimentos que serão aplicados e descrever qual será a reação da aeronave. Isto aumentará a consciência situacional dele e permitirá que ele identifique os desvios mais rapidamente e faça as correções necessárias.

          Com intensidade cada vez maior, os operadores de aeronaves têm adotado os conceitos do CRM nas suas operações, com grande sucesso para a eficiência e segurança. O gerenciamento de cabine tem um dos seus pilares na comunicação entre os tripulantes. Portanto, não apenas escute, mas ouça atentamente. Não deixe que a sua vaidade como instrutor afete a segurança de voo. Tenha o hábito de deixar o aluno falar e perguntar. E reaja de modo a motivá-lo a falar novamente. Caso contrário, você pode terminar em frente a um Cessninha acidentado, perguntando: “por que você não me avisou?”.

12 comentários:

  1. Muito bom David! Obrigado pelo artigo com certeza muito importante para todos os aviadores.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom David! Obrigado pelo artigo com certeza muito importante para todos os aviadores.

    ResponderExcluir
  3. Seu texto é muito claro e objetivo. Contribui bastante na instrucao de voo.

    ResponderExcluir
  4. Seu texto está muito claro e objetivo e contribui bastante para melhorar a instrução de voo. Parabens Davi!

    ResponderExcluir
  5. David, colocações fantásticas!
    Extremamente pontuais numa fase tão importante neste início de carreira. Parabéns!

    ResponderExcluir

ACIDENTES FATAIS COM BIMOTORES LEVES - O ERRO CLÁSSICO

No dia 24 de janeiro de 2021, foi noticiado um acidente com aeronave Beechcraft Baron B55 nas proximidades da pista particular da Associação...