15 de janeiro de 2020

ERRO DO PILOTO - ARMADILHA PARA A SEGURANÇA DE VOO?


Ao longo da história da aviação, pilotos têm sido sumariamente responsabilizados pela maioria dos acidentes aéreos. Este veredito instantâneo, normalmente estampado na mídia jornalística nos dias seguintes a um desastre, pode ofuscar os verdadeiros fatores contribuintes, essenciais para a prevenção de novas tragédias.

Na visão do grande público, o termo “erro do piloto” é sinônimo de culpa do piloto, com todas as consequências que isto pode gerar. Declarar que um acidente ocorreu por erro do piloto atende às questões da sociedade sobre quem é o responsável e, muitas vezes, gera uma sensação de satisfação sobre as causas do evento. Mas esta é uma afirmação ingênua que não melhora em nada a segurança no transporte aéreo por um motivo bem simples. O piloto é, na verdade, o elo final de um complexo sistema de aviação que projeta, fabrica, testa, certifica, faz manutenção e que normatiza, regula e fiscaliza todas as inúmeras facetas de sua operação, incluindo treinamento e procedimentos. Por ser o último elo deste complexo sistema, as ações do piloto são as mais visíveis, induzindo à enganosa percepção que está nele a principal responsabilidade por um acidente. Quando uma empresa aérea decide, por exemplo, economizar no treinamento ou falha em supervisionar procedimentos, a consequência vai ser rotulada como “erro do piloto”, mas as ações gerenciais dificilmente aparecerão na mídia como causadoras da tragédia.

A focalização no desempenho individual permite que condições latentes prossigam sem serem corrigidas, como aconteceu com o caso do comandante Harry Foote, da empresa inglesa BOAC. Em outubro de 1952, ele partia do aeroporto de Roma sob uma noite chuvosa e escura, com um Comet I, o primeiro avião comercial a jato para transporte de passageiros. Durante a corrida de decolagem, assim que o trem de pouso de nariz saiu do solo, começou uma vibração característica de estol e a aeronave deixou de acelerar. O comandante decidiu interromper o procedimento, aplicou os freios mas não conseguiu parar dentro dos limites da pista, atingindo obstáculos no prolongamento da cabeceira oposta. Ninguém morreu, mas Foote atraiu considerável ódio da indústria de transporte aéreo por ter sido o primeiro piloto a danificar uma aeronave a jato de passageiros. A investigação, em um relatório de quatro páginas, apontou que o avião havia tocado a cauda na pista durante a corrida de decolagem, por ação incorreta do piloto, que levantara muito o nariz do aparelho. Depois do ocorrido, Foote foi informado pela companhia que não havia mais lugar para ele entre o seleto grupo de pilotos de Comet.

De Havilland DH.106 Comet acidentado em Roma, em 1952.

Investigações posteriores demonstraram que havia outros fatores presentes. Tendo sido o primeiro avião comercial a jato, o Comet estava em serviço há menos de seis meses e o comandante Foote tinha se defrontado com um problema que não ocorria na operação dos aviões a hélice com asas convencionais. Por causa das novas asas enflechadas, se o nariz da aeronave fosse levantado muito alto durante a corrida no solo, o excessivo arrasto aerodinâmico impediria que o avião atingisse a velocidade de subida. Decolando sob uma noite chuvosa, na proa de um terreno montanhoso e escuro, o comandante Foote não tinha um horizonte visível para orientá-lo sobre a atitude de arfagem correta e o horizonte artificial não tinha marcações de atitude como hoje. Além disso, como o Comet possuía comandos de voo atuados hidraulicamente, uma novidade na época, não transmitia ao piloto a mesma sensibilidade de controle comum aos aviões com acionamento convencional, levando-o a comandar uma atitude de nariz excessivamente alto.

Menos de cinco meses depois, outro Comet acidentou-se exatamente nas mesmas circunstâncias, sem deixar sobreviventes. Agora, a imprensa especializada começava a questionar a ocorrência de dois eventos tão parecidos em curto espaço de tempo. Desta vez, o fabricante iniciou uma série de testes sobre o desempenho do avião, identificando que havia uma margem ínfima acima do estol na decolagem. Isto resultou em modificação do desenho das asas, tornando a operação bem mais segura. Somente em 1959, sete anos depois da ocorrência em Roma, o fabricante admitiu que o desenho do avião poderia, de alguma forma, ter contribuído para o acidente do comandante Foote.

Este episódio clássico é representativo das implicações que podem atingir tanto um tripulante, como principalmente a própria segurança do transporte aéreo quando se emitem opiniões apressadas ou se produzem investigações superficiais sobre um evento. A insistente focalização no desempenho do piloto por parte de alguns países, fabricantes ou empresas de aviação é resultado da tendência natural de concentrar em uma única pessoa a responsabilidade por uma tragédia que tenha atraído atenção da opinião pública. Quando fazem isto, há, até involuntariamente, um certo conforto para todos da comunidade de aviação, que se mantêm imunes a outras consequências. A empresa aérea aceita o encargo de pagar indenização pelas perdas (cobertas pelo seguro), mas escapa da acusação de possuir um programa de treinamento inadequado ou não supervisionar a padronização de procedimentos de cabine, que poderiam significar alguma negligência e problemas bem maiores. Os fabricantes evitam as responsabilidades legais da eventual descoberta de inadequações dos projetos. Os órgãos reguladores do governo não são criticados por emitirem normas permissivas ou por falta de fiscalização. Apenas o piloto que cometeu o erro é imputado pelas deficiências do sistema. Pior do que tudo isso, os reais problemas de segurança de voo não são corrigidos e voltarão a se repetir.

A segurança do sistema de aviação busca, e deve sempre continuar buscando, uma abordagem sistêmica para a prevenção de acidentes. Todo o processo envolve seres humanos, desde a concepção até a operação da aeronave certificada.  Quando o objetivo é a prevenção de acidentes, o processo deve possuir ferramentas robustas para identificar os possiveis erros humanos e criar estratégias para que aqueles erros nao voltem a ocorrer no futuro. Isto sim é trabalhar no interesse público de construir um sistema de transporte aéreo com os mais altos índices de segurança. O ato de atribuir culpa pelo evento a um único elo do sistema simplesmente vai na contramão deste interesse e permite que as falhas do processo não sejam corrigidas e voltem a se repetir. 

Nem heróis, nem vilões, pilotos são profissionais envolvidos em cenários pouco conhecidos do público geral, expostos algumas vezes a variáveis imprevisíveis que exigem decisões instantâneas, precisas e vitais, mas que cometem erros como qualquer ser humano. Não se está aqui querendo evitar o uso do rótulo erro do piloto, até porque ele está presente sim na maioria dos eventos. Mas as investigações de segurança de voo não podem perder a profundidade sistêmica, essencial para a prevenção, mesmo quando o erro individual for identificado.

O transporte aéreo público apresenta um alto índice de segurança e confiabilidade. Com mais de 30 milhões de decolagens anuais ao redor do mundo, menos de um milionésimo resultam em acidentes com vítimas, justamente como resultado de toda estrutura de suporte na concepção, fabricação, certificação, operação, manutenção e no gerenciamento da prevenção. 

Entretanto, assim como no caso dos Comet’s, anormalidades não previstas causadas por fatores diversos, como novas tecnologias, estarão a exigir um acompanhamento constante das agências reguladoras para rever requisitos de homologação e para adequar o treinamento às novas realidades. Cada vez mais é necessário entender que opiniões e palpites emanados nas poucas horas ou dias que sucedem a um acidente são falhos em sua maioria, possuem o poder de prejudicar reputações e carreiras sem que todos os fatos tenham sido pesquisados e, pior e mais importante, não expõem os verdadeiros problemas de segurança que, pelo interesse público, devem ser tratados como parte de um sistema com todas as suas interações. 



Referências:
Statistical Summary of Commercial Jet Airplanes Accidents - 1959-2017,
Boeing Aircraft Corporation
The Naked  Pilot, David Beaty
 Black Box, Nicholas Faith
www.airdisaster.com


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