16 de março de 2019

REFÉNS DA AUTOMAÇÃO - PILOTAGEM BÁSICA



Os aviões de transporte estão cada vez mais automatizados. Um moderno jato de passageiros possui sistemas de pilotagem automática, controle automático das manetes dos motores e sistemas computadorizados de gerenciamento de voo. Em um perfil de voo convencional, o piloto atua diretamente nos controles por cerca de 5 minutos, metade na decolagem e metade no pouso. Às vezes, até por menos tempo se a aeronave estiver equipada com sistema de pouso automático. Consequentemente, existe uma preocupação crescente de que os pilotos estejam perdendo as habilidades para reagir manualmente quando há falha dos sistemas automatizados ou erro na programação dos computadores de bordo. Vários eventos têm sugerido esta dependência da automação, como aconteceu com um Boeing 757[1] em 2003.
A aeronave iniciou a descida, preparando-se para uma aproximação de pouso por instrumentos (ILS – Instrument Landing System). O Boeing foi vetorado pelo controle para interceptar o curso do localizador. O avião desacelerou para 220 KIAS e o comandante selecionou o modo de “Aproximação” no Painel de Controle de Modo (MCP – Mode Control Panel) do piloto automático. Na sequência, a aeronave foi liberada para descer até 2.500 ft e o comandante inseriu esta altitude no MCP. Quando o avião interceptou o curso do localizador, estava acima da rampa do ILS. O comandante, entendendo que o piloto automático (AP-Auto Pilot) não teria condição de interceptar a rampa de aproximação, desconectou o sistema e assumiu a pilotagem manual para apressar a descida. Um pouco depois, já abaixo dos 2500 ft de altitude, ele perdeu as indicações de ILS nos instrumentos do seu lado. Com a aeronave acima da rampa, os flaps fora da configuração de pouso e a perda de sinal do ILS sob condição de voo por instrumentos (IMC), a arremetida era o procedimento recomendado. O comandante apertou o botão de arremetida (Go Around), puxou o manche até ajustar a atitude em 20 graus acima do horizonte. O controle automático das manetes (AT-Auto Throttle) engajou, ajustando as manetes para empuxo máximo, e a aeronave começou a subir. 

Sequência de ações do Boeing 757 em arremetida sob IMC
Entretanto, como o procedimento de arremetida fora iniciado muito próximo da altitude que estava selecionada no MCP, o sistema mudou para o modo de captura de altitude e o Diretor de Vôo (FD–Flight Director) indicou uma guiagem para nivelar a 2500 ft. Estando em pilotagem manual, o avião em subida ultrapassou aquela altitude e o FD começou a dar indicação de descida, para voltar à altitude selecionada. Subindo agora com 25 graus cabrados, em configuração de pouso, a velocidade caiu rapidamente. Quando o Boeing atingiu 137 knots, o comandante levou o manche até o batente a picar e reduziu os motores para marcha lenta. O enorme jato assumiu 49 graus de nariz embaixo. A velocidade aumentou rapidamente na descida e, com a proximidade do solo, o alarme do GPWS começou a soar. O co-piloto interferiu e ambos os tripulantes atuaram com força nos comandos a cabrar. Com um fator de carga de 3,6g, o Boeing evitou a colisão no solo por apenas 320ft de altura.

O evento durou menos de 90 segundos desde a perda de controle até a recuperação. Na hora, ninguém entendeu exatamente o que aconteceu ou o porquê, mas os 75 passageiros e sete tripulantes ficaram apavorados com a experiência que, por pouco, não resultou em catástrofe. As análises posteriores mostraram um piloto conflitado entre a atitude que deveria manter e as indicações de guiagem do Flight Director. O comandante declarou que olhava para as telas a sua frente e não reconhecia a condição da aeronave. Inicialmente, no topo da manobra, deduziu que o avião estivesse estolando. Depois, na picada, disse nunca ter visto um indicador de atitude mostrando só “terra” e teve dificuldade em reagir. Ao que tudo indica, o piloto perdera suas habilidades de fazer manualmente um procedimento simples como a arremetida em IMC. Ele não controlou a atitude, a potência nem a configuração da aeronave. Não comandou o recolhimento dos flaps ou do trem de pouso. Seu cheque cruzado dos instrumentos foi lento e suas respostas nos comandos estiveram sempre cerca de 10 segundos atrasadas em relação ao avião. Seu desempenho foi insuficiente, apesar de ser um piloto qualificado e que havia cumprido o treinamento exigido aos pilotos de linha aérea. Entretanto, o mais significativo é que este não foi um caso isolado e nem se restringe a apenas esta tripulação.
Três anos antes, no Golfo Pérsico, um Airbus A-320[2] perdeu o controle durante uma arremetida noturna, também por falta de habilidade do piloto em vôo manual, causando a morte dos 143 ocupantes e a perda total da aeronave. E, em maio de 2006, um outro Airbus 320[3], durante arremetida manual em IMC na Rússia, teve uma perda de controle atribuída a falha de pilotagem e colidiu com o solo, vitimando todos os 113 ocupantes.
Estes eventos juntam-se a vários outros acidentes ocorridos mundo afora, onde a degradação das habilidades de pilotagem na operação de aeronaves automatizadas aparece como fator contribuinte. De fato, as companhias aéreas enfatizam o uso da automação o maior tempo possível, pois o automatismo voa melhor que o ser humano em precisão de manobras e economia de combustível. O lado negativo desta política é produzir um piloto que só sabe voar seguindo o diretor de voo e que raramente olha para as informações sobre atitude e desempenho fornecidas pelos demais instrumentos, perdendo sua habilidade de cheque cruzado. Tudo vai bem se o voo procede normalmente e se os dados que alimentam o piloto automático estão corretos. Infelizmente, a programação no MCP e no FMS são os primeiros itens a serem afetados em situações de elevada carga de trabalho, de distração, de estresse e confusão. 
Parece estarmos esquecendo que, independente do nível de automação de uma aeronave, a pilotagem envolve dois parâmetros básicos: ATITUDE e TRAÇÃO. Estes dois fatores definem qualquer regime de voo. Tem sido assim desde o primeiro vôo do mais pesado que o ar. O fato de estarmos voando aviões eletrônicos em nada muda a mecânica básica do voo e a necessidade de controlar atitude e tração. Quando surge um conflito sobre o que o avião esta fazendo em modo automático, só há uma resposta: reverter para a pilotagem básica, fazendo referência a atitude e tração. 
Este conceito poderia ter salvo um outro Boeing 757[4], em 1996. O avião acabara de sair de uma lavagem e o pessoal de terra tinha colocado fitas adesivas sobre as tomadas estáticas como proteção durante o serviço. Na inspeção pré-voo, a tripulação não viu as fitas e, quando o jato decolou naquela noite, com 61 passageiros, os pilotos perceberam uma grave incorreção nos instrumentos de altitude e velocidade. Embora fosse viável controlar o avião manualmente, os computadores do piloto automático e de empuxo dos motores não tinham dados para funcionar corretamente. Voando sobre o mar, a noite, a tripulação recebia informações conflitantes, como a ativação do aviso de estol (stick-shaker) simultaneamente com o alarme aural de excesso de velocidade. Não podiam precisar sua velocidade nem altitude, embora o horizonte artificial e os instrumentos dos motores estivessem operacionais. Depois de 28 minutos de intensa confusão na cabine, o Boeing colidiu no mar, a 300 knots, sem deixar sobreviventes. O avião poderia ter sido controlado se os conceitos de atitude e tração fossem postos em prática. Talvez, todos os pilotos devessem memorizar algumas combinações de atitude e tração que garantissem o voo em caso de anormalidade.
Assim como nas falhas de controle de atitude, a falha no controle de tração foi fator crítico em outros eventos. Existe, por exemplo, uma prática de planejar a decolagem inserindo nos computadores de vôo uma informação de temperatura ambiente mais alta que a real. Isto provoca uma redução de empuxo dos motores durante a decolagem, poupa a vida do motor e economiza dinheiro. É um procedimento comum e aprovado na aviação comercial, observados certos parâmetros. Mas os três casos abaixo chamaram a atenção sobre o desempenho dos tripulantes. Em janeiro de 2000, um Airbus A-310[5] decolando com empuxo reduzido teve um alarme de estol logo ao sair do solo. Em março de 2003, devido a um erro no cálculo de peso, o comandante de um Boeing 747[6] executou a rotação cerca de 33 knots abaixo da velocidade prevista, arrastou a cauda no solo e decolou com o stick-shaker ativado. Mais grave ainda, em outubro de 2004, outro Boeing 747[7] não acelerou o suficiente durante a corrida de decolagem, ultrapassou o final da pista e ficou totalmente destruído. Estas três decolagens foram planejadas com empuxo reduzido, os aviões não tiveram o desempenho esperado e, em nenhum dos casos, os pilotos avançaram as manetes para obter empuxo máximo. Nos três casos, embora o ajuste inicial fosse inadequado, havia potência disponível para os aviões voarem. Por que, então, os pilotos não avançaram as manetes? Seria o caso de submissão extrema aos manuais ou simplesmente uma falha na aplicação de conceitos básicos de pilotagem.

     Outro exemplo típico de perda das habilidades básicas envolveu um Boeing 777 [8] em procedimento de arremetida no solo. A aeronave realizava uma aproximação que resultou em uma longa flutuação no arredondamento para o pouso. Logo após o toque no solo, ao receber o aviso sonoro de "Long Landing", a tripulação optou pela arremetida. O relatório preliminar de investigação não foi claro sobre os procedimentos na cabine, mas supostamente o piloto apertou o botão que ativa o perfil de arremetida, o Diretor de Voo iniciou a guiagem para cima e o piloto manualmente comandou a atitude de subida. Assim que o avião deixou o solo, os flaps e trem de pouso foram recolhidos. Mas aparentemente as manetes não foram avançadas para potência máxima, que é uma tarefa básica de qualquer arremetida, e a aeronave, sem velocidade ou tração suficiente, retornou ao solo sofrendo danos graves. O detalhe é que, neste tipo de aparelho, o sistema de controle de manetes é desativado automaticamente depois que se toca o solo. Acostumado à atuação sempre presente do Auto-Throttle, é provavel que não tenha havido ação dos tripulantes em avançar as manetes para completar a arremetida.


Uma das hipótese para este acidente com um Boeing 777 seria o piloto ter iniciado a arremetida no solo sem avançar as manetes de empuxo dos motores.

O que deve ficar claro neste universo de eventos é que o ser humano desenvolve destreza naquilo que exercita, mas também esquece o que não pratica. O cenário de operação de aeronaves automatizadas está induzindo à degradação das habilidades de pilotagem manual, que serão requeridas, muitas vezes, em situação de emergência. As soluções passam pelo treinamento, pelas políticas das companhias e pela fiscalização das autoridades aeronáuticas. O treinamento hoje tem forte ênfase na automação, talvez por assumir que a pilotagem básica é garantida pela experiência anterior do tripulante. Errado. O treinamento em linha aérea deve passar obrigatoriamente pelo voo manual e falhas induzidas pela automação. Os acidentes estão constantemente nos mostrando esta necessidade. Como solução adicional, algumas empresas orientam para que os pilotos exercitem aproximações em três diferentes níveis de automação. Na maior parte do tempo, devem utilizar os sistemas automatizados por questões de economia e precisão, mas uma pequena porcentagem das aproximações deve ser feita em pilotagem manual, com e sem a guiagem do Diretor de Voo. Mas vale lembrar que voo manual seguindo o FD e com o AT engajado não exercita o controle de Atitude, nem o de Tração e muito menos o Cheque Cruzado, habilidades primordiais à pilotagem básica
Estudo após estudo, conclui-se sobre a necessidade de praticarmos o básico, pois os mesmos fatores causais tem emergido a cada investigação de acidente. Precisamos incentivar a manutenção das habilidades de voo que dominávamos quando tiramos nossas licenças de pilotos. A automação é uma realidade sem volta e com inestimáveis avanços para a segurança e eficiência da aviação, mas que também pode gerar confusão pela sua complexidade. Quando isto acontecer, a recomendação é baixar o nivel de automação ou reverter para a pilotagem manual e retomar controle da aeronave. E esta solução passa necessariamente pelas habilidades de pilotagem básica.

________________________________________________
Riscos da Automação envolvendo sistemas de controle de voo Fly-by-Wire serão abordados em um próximo artigo específico.
_____________________________________________




[1] Relatório Incidente IcelandAir Boeing 757-200,  22 JAN 2003;
[2] Relatório Acidente Gulf Air Airbus A-320, 23AGO2000;
[3] Aviation Safety Network, Armavia Airbus A-320, 03 MAI 2006;
[4] Relatório AeroPeru Boeing 757, 02 OUT 1996
[5] Relatório Kenya Airways, Airbus A-310, 30 JAN 2000
[6] Relatório Singapore Airlines Boeing 747-400, 12 MAR 2003
[7] Relatório  MK Airlines, Boeing 747, 14 OUT 2004
[8] Relatório Preliminar Emirates Airlines, Boeing 777, 03AGO2016

4 de março de 2019

O ACIDENTE PODE COMEÇAR DENTRO DE VOCÊ

Um pequeno avião bimotor decolou de Florianópolis com plano IFR para Lages (SC) com dois pilotos e dois passageiros. O aeródromo de destino estava abaixo dos mínimos meteorológicos, com nevoeiro e visibilidade muito reduzida. A tripulação cancelou o plano IFR, iniciou a descida e tentou o pouso mesmo naquelas condições, mas colidiram com o solo. A aeronave pegou fogo e os quatro a bordo faleceram.
Muitos diriam que o acidente teria sido causado pelas condições meteorológicas adversas mas esta conclusão seria precipitada e superficial. Se analisarmos com foco na prevenção, veremos que o mau tempo não pegou o piloto de surpresa nem jogou a aeronave contra o solo. Na verdade, coube ao piloto a decisão de continuar o voo e tentar o pouso abaixo dos mínimos. Como não houve sobreviventes, ninguém nunca vai saber exatamente o porquê da sua decisão. Mas os testemunhos colhidos na investigação dão conta que os passageiros deste aviao iriam de Florianópolis para o aeroporto de Guarulhos, mas precisavam antes pousar em Lages para apanhar seus passaportes, pois embarcariam em um voo internacional logo em seguida. Será que a necessidade dos passageiros afetou de alguma forma a capacidade de julgamento do piloto a ponto de ele tentar o pouso em condições de alto risco? É provável que sim. Será que ele percebeu a influência disto? É provável que não.
Outro caso: um helicóptero decolou do Campo de Marte com destino à Salto (SP). Próximo ao local de pouso, o piloto efetuou um voo rasante sobre uma rodovia, colidindo o rotor principal com um barranco na beira da estrada. Três dos sete ocupantes faleceram e a aeronave ficou irrecuperável. “Um caso típico de indisciplina”, diriam alguns. Sim, sem dúvida. Entretanto, sob a ótica da prevenção de acidentes, este rótulo em nada ajuda a melhorar a segurança das operações. Que tal buscar a origem do acidente nos motivos que levaram o comandante a decidir fazer um voo a baixa altura desnecessariamente. O ponto chave para toda PREVENÇÃO de acidentes não é descobrir o QUÊ aconteceu, mas sim identificar o POR QUÊ.

Nos últimos dez anos, o Julgamento de Pilotagem e o Processo Decisório na cabine somados foram fatores contribuintes em mais de 50% dos acidentes aéreos no Brasil. Fonte: CENIPA, 2018

Uma análise dos acidentes aeronáuticos ocorridos no Brasil nos últimos dez anos revela que grande parte dos eventos não teve nenhuma relação com sistemas mecânicos da aeronave ou com a meteorologia, mas sim com decisões incorretas tomadas pelos pilotos durante o voo. Na  sua maioria, a aeronave estava em condições normais de operação e não havia nenhum fator externo determinante para o acidente. Aqueles dois exemplos são casos clássicos onde o acidente começou dentro da cabeça do piloto, consequência das decisões que ele tomou.
Para escapar das armadilhas tradicionais que vitimam dezenas de tripulantes e passageiros, ano após ano na aviação, um dos passos é se educar sobre situações que podem influenciar a sua capacidade de julgamento e de tomada de decisão.

FATORES INTERNOS
O comportamento de um piloto - na verdade o comportamento de qualquer ser humano - pode ser motivado por fatores externos e internos. Entre os fatores internos observados com maior frequência nas investigações de acidentes aéreos estão: a ansiedade, a pressa, o excesso de autoconfiança, a vaidade, o exibicionismo e o sentimento de invulnerabilidade.
Já percebeu a frequência de tragédias durante festividades relacionadas com a aviação envolvendo pilotos não qualificados para exibições? Aniversários de aeroclubes, semana da asa e feiras aéreas são eventos que contribuem para engordar as estatísticas de acidentes. O exibicionismo, uma característica que se exacerba durante estas festividades, altera a capacidade de julgamento de um piloto e o coloca em situação onde ele acaba excedendo seus limites se não estiver preparado. Mas isto não acontece apenas em festividades. Quantos e quantos já morreram na frente de pais, esposas, namoradas, filhos e amigos, realizando manobras que em muito excediam a sua capacidade pessoal ou a da aeronave que pilotavam? Será que eles acreditavam que teriam um comportamento absolutamente normal mesmo quando voando nestas circunstâncias? Um piloto que se ache imune, provavelmente não está conseguindo identificar como estas situações lhe influenciam e isto aumenta a chance de se tornar mais um número na estatística de acidentes. Por outro lado, ao conseguir perceber os fatores que influenciam seu julgamento, estará caminhando no sentido de conhecer melhor as suas limitações individuais, comuns a qualquer ser humano.
Excesso de autoconfiança é outro fator presente em decisões incorretas tomadas no ambiente de aviação. Quanto mais você conhece uma operação, quanto mais repeti-la, mais confiante estará quanto ao seu sucesso. Mas isto também vale quando você estende os limites ou se desvia das regras. Um resultado positivo reforça na sua mente a suposta correção daquela decisão. E você repete o comportamento mais e mais vezes, cada vez mais confiante de que continuará dando certo, embora esteja, na verdade, aumentando sua exposição ao risco. Até um dia em que algum pequeno fator fora do seu controle vai pegá-lo desprevenido. E ouviremos aquela famosa frase: "mas eu sempre fiz assim". Foi a sua autoconfiança excessiva que gerou complacência - um rebaixamento do seu nível de alerta - e te deixou mais vulnerável.
 De novo, o primeiro passo para tomar melhores decisões é reconhecer as situações que alteram a sua capacidade de julgamento.
 Para qualquer um daqueles fatores internos, como a pressa, a ansiedade, o excesso de autoconfiança ou a vaidade, é importante reconhecer que existe uma condição alterando o seu desempenho pessoal e a sua capacidade de avaliação. Quantos pilotos, por exemplo, pressionam a continuação de um voo sob mau tempo com o pretexto de “preciso chegar hoje..., o passageiro tem uma reunião importante..., este doente tem que estar no hospital logo..., se eu não chegar à cidade o patrão vai ficar chateado”. As estatísticas estão repletas de aviões que nunca chegaram. A decisão final é do piloto, do comandante da aeronave. Ficamos tão preocupados em chegar, que aceitamos esticar os limites além dos regulamentos e das nossas capacidades. Às vezes, supomos uma pressão externa que talvez nem exista. Da próxima vez que se sentir pressionado, experimente explicar as condições ao seu passageiro, se for o caso, e descubra se é tão importante assim para ele chegar na hora marcada considerando as condições. Provavelmente, ele vai optar pela decisão mais segura. Experimente perguntar a si mesmo se não é a sua vaidade profissional que te impede de curvar 180 graus e voltar para o aeroporto de origem. Quanto mais cedo, no planejamento ou durante o voo, você conseguir perceber isto, mais perto estará de tomar uma decisão melhor. Por outro lado, quanto mais próximo do seu destino, quanto mais retardar sua decisão, mais pressionado se sentirá para continuar no caminho arriscado.


Um helicóptero executivo decolou da cidade de São Paulo para uma praia em Maresias, tentou uma aproximação noturna  sob condições meteorológicas adversas e terminou colidindo com o mar a 3 km da costa. A aeronave submergiu e dois dos ocupantes faleceram.




          Um aspecto muito importante do comportameno humano em aviação é o controle da vaidade. Todos nós cometemos erros.  Mas o orgulho profissional conjugado com a tentativa de não deixar o erro aparecer pode ser trágico. Existem inúmeros casos de pilotos que cometeram um erro no planejamento do voo e se viram, por exemplo, com pouco combustível para chegar ao destino com segurança. Mas a eventual decisão de pousar em um campo alternativo mais próximo suscitaria perguntas embaraçosas de serem respondidas. Então, mesmo sabendo do risco, ele prossegue para o destino original. Algumas vezes isso não dá certo e temos aviões pousando forçado a poucas milhas do destino, sofrendo danos graves, provocando sérias lesões nos ocupantes, tudo porque o piloto tentava apenas esconder o seu erro. Vaidade.  

        Outra armadilha sutil vem do fato do homem usar sua capacidade lógica e de argumentação para se justificar e fazer as coisas que ele deseja, ao invés de optar pelo que é sabidamente o melhor a ser feito. A maioria de nós, quando confrontado com um conflito entre o que sabemos que é o correto e aquilo que gostaríamos de fazer, tende a procurar uma forma de satisfazer os desejos, enquanto se convence de que é a coisa certa a fazer. E isto vale para a nossa vida em geral, não só para a aviação. Você já deve ter passado por uma situação parecida. Aceitou fazer um voo planejando retornar no mesmo dia, pois já tinha compromissos assumidos para o dia seguinte, quaisquer que fossem. Mas, ao tentar voltar, se depara com uma previsão de tempo ruim pela frente. Inicialmente, você pensa: “Eu queria voltar para participar do torneio de tênis neste fim de semana, mas a meteorologia agora está ruim e com formação de gelo na rota, além do que já está escurecendo”. Até aqui, você está listando fatos e está tudo sob controle. O problema é quando você continua com o seguinte raciocínio: “Mas qual o problema? Estou mesmo precisando fazer algumas horas de voo por instrumentos e, se eu for no nível certo, não devo ter problema com gelo. Além do mais, eu nem trouxe roupa para o pernoite”. Isto se chama RACIONALIZAÇÃO. Você gostaria de voltar para casa, sabe que o tempo está ruim, que está cansado e que o melhor seria ficar. Mas... você precisa treinar o voo IFR. Vem bem a calhar. Afinal, você nem está tão cansado assim. Então, "preparem as raquetes porque estou a caminho".
         Normalmente, este processo de racionalização acontece sem que o piloto se aperceba. Ele simplesmente tem certeza que analisou todos os pontos e tomou a melhor decisão. Se um dia você se pegar procurando muitos argumentos para justificar uma decisão, não quer dizer que esteja necessariamente à beira de um acidente, mas talvez esteja querendo justificar uma vontade pessoal e tomar uma decisão que não seria a mais indicada para aquele contexto. O grande problema é que, à medida que o tempo passa, você vai ter mais dificuldade para identificar estas decisões inadequadas, pois elas terão se tornado comuns, e você começará e estender os seus próprios limites. Aí, sua capacidade de avaliar e decidir já estará distorcida e você estará mais vulnerável a decisões inadequadas.
          É importante que todos nós tripulantes estejamos atentos. Quando a natureza básica do homem, seus impulsos e desejos o levarem a uma direção, e seu conhecimento e sua razão o inclinarem para outra, muitas vezes ele vai optar por aquela que atende seus impulsos, a não ser que ele consiga perceber isto e responda adequadamente. Isto se chama MATURIDADE. Nos dois acidentes comentados no início, os pilotos não perceberam e se tornaram vítimas, respectivamente, da pressão autoimposta e do exibicionismo.
            A primeira e mais importante barreira para falhas de decisão é a DISCIPLINA no exercício da atividade. Disciplina pode ser entendida apenas como cumprimento das normas e regulamentos. Mas também pode ser vista como sua força de vontade para tomar decisões sensatas quando existirem tentações e pressões para fazer o contrário. A disciplina é algo a ser exercitado em todo voo. Não adianta andar à margem dos regulamentos e do bom senso e pensar que nas situações críticas você será tomado por um arroubo de disciplina e vai tomar a melhor decisão do mundo. Não vai, pois você condicionou o seu cérebro a pensar de uma certa forma e ele vai continuar seguindo aquele padrão inseguro. Você mesmo se treinou assim.

Disciplina é fazer o que precisa ser feito, mesmo que voce não tenha vontade de fazê-lo

 A aviação é uma atividade muito segura mas que, por vezes, torna-se perigosa pelas posturas do próprio piloto. Tente controlar seus desejos e esteja atento às armadilhas que a natureza humana põe à sua frente. Seja um piloto melhor do que aqueles que não conseguiram perceber estes fatores e tomaram decisões tragicamente erradas. Na próxima vez que entrar na sua aeronave, lembre-se: as condições para um acidente podem começar dentro da sua própria mente. Ter esta percepção pode salvar a sua vida.

Referência:
Relatório Final de Acidente PT-OQH, 28MAI1995



ACIDENTES FATAIS COM BIMOTORES LEVES - O ERRO CLÁSSICO

No dia 24 de janeiro de 2021, foi noticiado um acidente com aeronave Beechcraft Baron B55 nas proximidades da pista particular da Associação...