17 de agosto de 2018

PENSE EM EMERGÊNCIA

Algumas vezes, uma emergência em voo pode gerar tanta ansiedade a ponto de dificultar a execução dos procedimentos. Como pode o piloto se preparar para contornar esta situação?


Alguém já falou certa vez que existem dois tipos de pilotos: aqueles que já tiveram uma emergência e aqueles que ainda vão ter.
Emergência é uma possibilidade na vida de qualquer aviador e seria bom estarmos preparados para reagir adequadamente antes que a coisa se complique. Mas o segredo para lidar com uma situação de emergência não se limita a apenas conhecer o checklist. Envolve, antes, saber diagnosticar a situação para poder aplicar os procedimentos corretos. A dificuldade ou o atraso em identificar o que está se passando pode agravar circunstâncias que, de outra forma, seriam contornáveis. Foi o que aconteceu durante um voo em um monomotor turboélice com um tripulante ainda pouco experiente no modelo. Durante a descida, o piloto observou o acendimento das luzes “gerador” e “hidráulica” no painel de alarmes. Após a tentativa de rearmar o gerador, sem sucesso, e verificando que a pressão hidráulica caia, ele reagiu rapidamente, comandando a extensão do trem de pouso antes de perder totalmente o sistema. Em seguida, atuou na manete de potência para compensar a perda de velocidade. O avião não respondeu e continuou perdendo velocidade e altura. Só então o piloto entendeu o que estava acontecendo. Na verdade, ao guiar suas ações pelo painel de alarmes, ele não reconheceu que a sequência de acendimento das luzes era em decorrência da parada da turbina. Como a falha do motor em monomotores turboélice ou a jato não é assim tão evidente quanto em um avião com motor convencional, ele reagiu pelos estímulos mais chamativos, ou seja, a sequência de acendimento das luzes de alarme. A interpretação errônea e a aplicação de procedimentos inadequados levaram a uma situação irreversível: aeronave com o trem travado em baixo, motor parado, grande razão de afundamento e à baixa altura, sem tempo de tentar nova partida em voo. Perdeu-se um avião devido, entre outros fatores, à falha em identificar a situação e reagir corretamente.

As luzes de alarme são um indicativo do tipo de falha de sistema, mas nem sempre dizem tudo o que o piloto precisa saber

É perfeitamente compreensível que, no caso de uma anormalidade em voo, o piloto seja tomado por alguma dose de apreensão, embora ninguém goste de admitir isto abertamente. Mas esta é uma conversa entre pilotos e podemos falar sobre o assunto. Quando, por exemplo, um motor para, parece que o cérebro congela por alguns instantes. Tentamos pensar em algo para fazer, mas a resposta pode demorar a vir. Um dos componentes desta apreensão é o medo do que pode acontecer. Se o motor parou, o piloto não tem medo por estar planando. A preocupação é com o que possa acontecer no final deste planeio.  Se o tripulante sabe como minimizar o perigo, será capaz de se concentrar na ação. Quando não sabe, sua mente vai focalizar no desastre que ele imagina que vai encarar em alguns instantes. O medo é inevitável em uma situação de emergência. O pânico é o medo elevado a um nível que congela a mente. Com treinamento, é algo que pode ser evitado ou, ao menos, administrado. Se o pânico aparecer, devemos estar aptos a responder com alguma ação que esteja firmemente implantada em nossas mentes, antes mesmo de haver tempo de pensar sobre o que está ocorrendo.
Nunca é demais enfatizar que, em qualquer situação anormal, a prioridade deve ser VOAR e CONTROLAR o avião. Parece óbvio, mas a realidade mostra que não tem acontecido assim. Manter o controle da aeronave tem precedência sobre qualquer outro procedimento. Mesmo que a aeronave esteja pegando fogo, você deve primeiro voar e controlar o avião e depois tentar apagar o fogo. Logicamente, isto é muito mais fácil de falar do que fazer, mas é fato comprovado que muitos pilotos acidentaram-se porque priorizaram o combate à emergência em detrimento do controle da aeronave.
Assim sendo, e lembrando sempre daquela prioridade de voar e controlar o avião, os passos vitais dos procedimentos de emergência devem estar memorizados e exercitados, de forma que o condicionamento ajude o início de uma resposta automática antes que o pânico domine. Este condicionamento realmente funciona. Se treinarmos um procedimento de emergência, simulando a operação e atuando nos controles e dispositivos, praticando os movimentos e gestos na cabine - mesmo com o avião estacionado no pátio - vamos apresentar a mesma resposta instintivamente quando a pane aparecer. Durante uma parada de motor que experimentei no início da carreira, coloquei o avião na atitude de planeio (controle da aeronave) e minhas mãos procuraram a seletora do tanque de combustível, a bomba elétrica e os magnetos (procedimentos), antes mesmo de ter tido tempo de pensar no que estava ocorrendo. Isso só aconteceu assim porque eu havia passado por um intensivo treinamento de procedimentos de emergência. O motor voltou a funcionar e só então entendi que havia deixado de monitorar o combustível e que um dos tanques havia secado. A velocidade de resposta foi essencial porque era um voo à baixa altura e fez muita diferença para evitar um acidente. Por isso é importante que alguns procedimentos sejam efetivamente praticados e não apenas memorizados, para que se condicione uma resposta motora inicial até que o cérebro volte a funcionar. A triste realidade, entretanto, é que, depois da instrução básica, dificilmente o piloto se aplica nos treinamentos a ponto de condicionar suas respostas. Neste caso, quando o pânico aparecer, ele vai ter que aguardar um pouco até que seu cérebro volte novamente à ação. E isto pode consumir um tempo precioso.
Para lidar com uma emergência técnica em voo, portanto, é necessário saber realizar os procedimentos e até mesmo condicionar algumas respostas. Contudo, apenas memorizar as ações vitais não é suficiente. É preciso, acima de tudo, reconhecer e entender o que está acontecendo. Uma luz de gerador no painel pode significar uma falha de gerador, mas também uma pane elétrica total ou mesmo um apagamento de motor. Pergunte-se, então, quais são os sintomas quando um motor para? Quais os sinais que sua aeronave apresenta? O que os instrumentos indicam, quais as luzes que se acendem, quais as reações aerodinâmicas resultantes daquele problema? O piloto que não tem uma resposta correta para estas perguntas, pode ver-se em situação complicada de uma hora para outra. Certa vez, voando de passageiro em um pequeno bimotor turboélice, me surpreendi com o briefing de decolagem feito pelo comandante: “no caso de falha do motor após a rotação, faremos a identificação do motor em pane. Vamos confirmar com os pedais do leme: o pedal que estiver duro é o do motor em pane”. E o copiloto concordou com o briefing incorreto. Fico imaginando o que teria acontecido se aqueles pilotos tivessem experimentado uma pane na decolagem logo após a rotação. No mínimo, certa confusão na cabine em um momento especialmente crítico, onde respostas inadequadas poderiam conduzir a uma tragédia.
Será que nós pilotos estamos realmente aptos a diagnosticar uma emergência e aplicar os procedimentos necessários? Vejamos alguns exemplos de casos verídicos, colhidos nas investigações de acidentes. Os tripulantes de um helicóptero Bell 205, voando sobre o mar, observaram a queda de rpm no tacômetro de rotação da turbina de N2. Eles interpretaram a indicação como sendo uma falha do motor, comandaram uma autorrotação e executaram uma amerissagem forçada. Não fizeram um cheque cruzado para confirmar a pane, que era falha apenas do tacômetro e não da turbina. O helicóptero teve perda total, dois tripulantes afundaram com os destroços e um ficou gravemente ferido. Em outro caso, um Learjet entrou em emergência quando os pilotos identificaram um grave desbalanceamento de combustível entre os tanques das asas. Eles concluíram que os dois motores estavam consumindo de um só tanque, já prestes a ficar vazio, e que isso implicaria na parada iminente de ambos os reatores. Se conhecessem melhor o sistema, saberiam que, por construção, cada tanque de asa daquele modelo só abastece o motor de seu próprio lado e, portanto, perderiam apenas um dos motores e não os dois como imaginavam. Fizeram um tráfego de emergência apressado e mal planejado, e a aeronave perdeu o controle devido ao desbalanceamento excessivo e aos procedimentos incorretos na cabine. O Learjet girou violentamente e atingiu o solo de dorso. Todos os seis ocupantes a bordo morreram por erros cometidos a partir de uma situação que não tinha motivo para pânico.
Se, por um lado, a falta de treinamento e de conhecimento vai se evidenciar durante a emergência, por outro lado os excessos no treinamento poderão ser desencadeadores de acidentes. Certa vez, um bimotor EMB-110 Bandeirante decolou de Montes Claros para Belo Horizonte, com o copiloto operando. Durante a subida, como treinamento, o comandante reduziu e embandeirou o motor direito. Foram feitos os procedimentos previstos e novamente retomada a subida. Ao atingirem o FL 100, o comandante reduziu, embandeirou e cortou os dois motores simultaneamente, para demonstrar ao copiloto as características de voo naquela situação. Logo depois, tentou dar partida normal nas turbinas, mas não conseguiu. Pretendeu então uma partida sem arranque, infrutífera. Nestas circunstâncias, a única opção foi um pouso de emergência em uma rodovia, resultando em danos graves na aeronave durante um treinamento não previsto e desnecessário.

Embraer 110 Bandeirante faz um pouso forçado após um desnecessário treinamento de falha dos dois motores

          Alguns instrutores defendem que a preparação do piloto para a emergência deve ser a mais realista possível. Esta é uma abordagem bastante discutível, pois frequentemente vai colocar a aeronave em situações críticas, algumas vezes irrecuperáveis. A realidade têm demonstrado que muitas vezes a simulação vira emergência real. Em 1983, um Boeing 737 tinha acabado de decolar de Manaus, quando testemunhas viram o avião iniciar um intenso rolamento lateral, passar para o dorso e colidir com o terreno. Não houve sobreviventes. As investigações revelaram que, após sair do solo, o comandante reduziu a manete do motor esquerdo. O copiloto tentou controlar o avião, mas manteve uma atitude de arfagem reduzida e a aeronave começou a descer. Depois de alguns segundos, percebendo que a situação se complicava, o comandante avançou a manete de volta para potência máxima. O restabelecimento inesperado do empuxo, conjugado com o pedal aplicado pelo copiloto para manter o controle em condição monomotor, fizeram o avião girar para o voo de dorso e causar o acidente. Por isso, o instrutor deve sempre pesar a necessidade de treinamento de uma emergência simulada contra os riscos associados ao voo real. Se alguma coisa sair errada, os prejuízos serão muito maiores que os benefícios. A preparação de um piloto para algumas emergências críticas pode ser feita no solo, de várias formas, seja conversando numa sala de briefing, na cabine de um avião estacionado, ou - a melhor opção - no simulador de voo. Algumas empresas de aviação ainda não perceberam a valia do treinamento em simulador. Os benefícios são inestimáveis, pois permitem que o piloto se capacite a identificar situações que nunca poderiam ser reproduzidas com segurança no voo real, além de condicionar as respostas motoras a estas ocorrências.
Uma ótima recomendação para se preparar para emergências envolve pesquisar os acidentes ocorridos com o tipo de aeronave ou com o tipo de operação que você voa. Atualmente, uma busca na internet em websites especializados disponibiliza um número sem fim de relatórios de investigação que podem ser usados para o seu aprimoramento profissional. Por que então cair novamente nas mesmas armadilhas ou cometer os mesmos erros de outros que se acidentaram e deixaram sua experiência para o nosso aprendizado?

Utilize as informações disponiveis na web para aumentar o seu conhecimento sobre acidentes com o
tipo de avião ou de operação em que voce atua

Pilotar um avião, todos nós sabemos, é tarefa fácil. Mas operar um avião com segurança significa atuar em um nível bem mais elevado e exige profissionalismo do tripulante. O profissionalismo em aviação envolve a vontade, a capacidade e a satisfação por operar corretamente em todas as situações; exige o cumprimento dos procedimentos padronizados; implica, por exemplo, em não ter preguiça de fazer o checklist em todos os voos e em todas as fases do voo; obriga fazer um planejamento antes da decolagem; demanda conhecer os sistemas, os limites da aeronave e os seus próprios limites; requer antecipação aos possíveis problemas, anormalidades ou emergências que podem ocorrer em voo, ou seja, envolve pensar nas emergências antes que elas aconteçam. E não se deve pensar que estas recomendações servem apenas para o "novinho" em instrução. Muitos pilotos experientes, com sua autoconfiança aumentada, deixam de se preparar adequadamente.  Confesso que confio mais em um piloto pouco experiente que se preparou para o voo, do que em um piloto experiente que não se prepara mais. Este último vai ser mordido pelo excesso de autoconfiança.

Profissionalismo em aviação é uma atitude. O piloto que não tiver uma postura correta estará sempre passeando no fio da navalha. Independente da habilitação ou da licença que possui, da escola de formação que tenha frequentado, dos aviões que tenha voado e do tempo que esteja na aviação, independente de receber para voar ou de pilotar como hobby, é a ATITUDE do piloto com relação à atividade aérea que vai ditar o seu desempenho e o seu nível de segurança na operação. Estar preparado para emergência é uma das marcas deste profissionalismo.

Referências:
Get-down-itis, Bud Davisson, Flight Training Magazine
Relatórios Finais de Acidentes, CENIPA

21 de abril de 2018

SEGURANÇA DAS OPERAÇÕES NA AVIAÇÃO EXECUTIVA


Na noite de 29 de março de 2001, as 19:02h local, um Gulfstream III, operado pela Avjet Corporation, colidiu com o terreno cerca de 800 metros antes da pista 15 do aeroporto de Aspen, Colorado (EUA). Os três tripulantes e todos os 15 passageiros sofreram lesões fatais. A aeronave ficou destruída.

O G-III havia sido fretado para transportar um grupo de pessoas, decolando de Los Angeles (LAX) às 16:30, para participarem de uma festa em Aspen (ASE) naquela noite. Embora o avião estivesse pronto no horário, os passageiros chegaram com atraso e os pilotos comentaram com alguns deles que talvez não fosse possível o pouso no destino, por causa de restrições à operação noturna. Quando soube desta possibilidade, o cliente se irritou e mandou seu assessor ligar diretamente para a administração da Avjet, instruindo para que o piloto “guardasse para si este tipo de comentário”. Mandou dizer à Avjet que o avião não iria para nenhum campo alternativo, que ele já havia pousado em Aspen a noite e que iria pousar novamente. Durante o voo, o gravador de cabine registrou os tripulantes comentando entre si da importância de pousar em ASE, pois o cliente estava pagando caro por este fretamento. Com horário apertado, os pilotos sabiam que seria possível tentar uma aproximação apenas, e então teriam que alternar outro aeroporto a 100 Km de distância.

A aproximação que culminou com o acidente foi resultado de uma série de erros iniciados bem antes da decolagem. Aspen, localizado em região montanhosa, não é um aeroporto fácil para tentar um pouso em condições meteorológicas marginais, principalmente com uma tripulação que não está padronizada. E esta tripulação não estava. Não houve um briefing da descida IFR. Depois, o comandante permitiu que um passageiro viesse a ocupar o assento extra na cabine de pilotagem (jump-seat). Durante o perfil de aproximação, a tripulação cruzou diversos fixos abaixo das altitudes especificadas e o copiloto deixou de fazer os callouts previstos. Desceram abaixo da MDA, embora as manobras erráticas da aeronave e os comentários no cockpit indicassem que nenhum dos pilotos havia estabelecido contato visual com a pista. Quando a aeronave estava a 1,4 milha da cabeceira, o comandante pergunta “onde está?”, mas não abandona o procedimento, mesmo sem ter identificado a pista. Ele prossegue voando abaixo da MDA, mas o copiloto não reage. Os alarmes de GPWS indicam repetidamente a proximidade com o terreno. O controlador da torre vê a aeronave a baixa altura e a direita do alinhamento da pista, fazendo uma curva acentuada a esquerda, provavelmente tentando interceptar a aproximação final. O jato atinge o solo em uma inclinação lateral de 50 graus e explode.


Gulfstream GIII acidentado em Aspen, EUA

O AMBIENTE DA AVIAÇÃO EXECUTIVA
Como muitos outros, este acidente revelou-se como mais uma tragédia clássica da aviação executiva, onde uma série de fatores contribuiu para colapso nas decisões dos tripulantes. A aviação de transporte executivo, como qualquer outra área empresarial, é um negócio com características próprias. Quando mal administrado, seja sob o foco técnico, seja gerencial, conduz à condições que podem comprometer seriamente a segurança de voo. Primeiro, há que se conhecer bem o cenário deste tipo de operação. Uma rápida comparação com as grandes empresas de transporte comercial evidencia logo algumas diferenças. A aviação de transporte regular opera em um ambiente organizado e previsível. Nela existe uma programação e rotas pré-estabelecidas. Os tripulantes sabem, com semanas de antecedência, qual será sua escala, para onde estarão voando e qual será a jornada de trabalho. Na aviação executiva, por outro lado, a operação é por demanda, em um ambiente altamente dinâmico e mutável. Primeiro, porque as aeronaves estão à disposição da agenda dos seus clientes, o que impõe uma série de incertezas na programação, começando com o horário real de decolagem. As longas e imprevisíveis jornadas de trabalho geram fadiga nos tripulantes, deixando-os muito mais vulneráveis a erros operacionais.
Os tripulantes da executiva têm que lidar também com toda a burocracia de despacho e planejamento do voo, incluindo mudanças de última hora, que podem variar desde aspectos relativamente simples, como o número de passageiros, até uma modificação do destino final pelo cliente já durante o voo. Quando isto ocorre, todo o planejamento anterior tem que ser abandonado. A tripulação precisa rapidamente se adaptar às novas exigências, estimar sua capacidade de atingir o novo destino, escolher campos de alternativa diferentes e recalcular o desempenho para operação na pista desejada. Mudanças de última hora, tão comuns na aviação executiva, dificultam um trabalho de planejamento abrangente e podem significar um aumento expressivo do risco, ainda mais quando conjugado com operação em aeródromos menores. Muitos clientes fretam aeronaves executivas porque as condições da pista não permitiriam a operação de uma aeronave de transporte regular. Muitas vezes, são pistas curtas e com limitações na infraestrutura de apoio à navegação, balizadas apenas por procedimentos de não-precisão ou, até mesmo, por procedimento nenhum. Foi neste cenário que um helicóptero Agusta A-109 tentou, indevidamente, fazer uma aproximação noturna na região de Maresias, no litoral paulista, lançando mão de recursos improvisados para pousar sob condições meteorológicas adversas e acabou colidindo no mar. O questionamento mais frequente depois de acidentes deste tipo é: por que um piloto da aviação executiva tenta, como ocorreu em Aspen ou em Maresias, realizar procedimentos que são reconhecidamente perigosos?
Helicóptero Agusta A109 após acidente na praia de Maresias, SP

Pressão para voar e completar o voo talvez seja a resposta, um aspecto peculiar da aviação executiva que requer especial atenção, seja dos tripulantes, seja dos administradores da empresa. É um fato bem conhecido que pilotos sentem uma intensa compulsão no sentido de iniciar o voo e, depois de iniciado, chegar até o destino previsto. Existem muitos fatores que conspiram para induzir a esta atitude. Para um piloto novato que ainda está acumulando horas, cada minuto no ar o aproxima de atingir os requisitos para conseguir emprego na linha aérea. Para o piloto que recebe por hora, um voo recusado representa menos dinheiro no final do mês. Para o piloto executivo, existe a possibilidade de desagradar o cliente e perder o negócio, ou colocar em risco o próprio emprego. E, para todos os pilotos, ainda há uma sutil pressão interna, o orgulho de conseguir fazer algo quando outros não conseguem, talvez combinado com um falso sentimento de invulnerabilidade, que pode conduzir a comportamentos de alto risco.
Por causa de tantos fatores que podem levar um piloto a quebrar a regras e assumir riscos desnecessários, por causa da pressão do cliente, real ou percebida, é essencial que a alta administração de uma empresa de aviação executiva desenvolva e implemente uma forte cultura interna que valorize o cumprimento das regras, reduzindo o risco tanto quanto possível. É desalentador que em algumas companhias haja, na realidade, uma significativa pressão da administração no sentido de se desviar das normas, completando o voo e satisfazendo o cliente. Não é difícil descobrir por que isto acontece.
Toda companhia de aviação está no negócio para maximizar o lucro, e pode parecer que as normas frequentemente conspiram contra este objetivo. Em um mercado competitivo como de aviação, acaba sendo sedutor desviar-se das regras um pouco, ou mesmo totalmente, no interesse de agradar o cliente, de bater a concorrência e tornar seu negócio mais lucrativo. O que poucos percebem é que estas atitudes passam a influir o comportamento de muitos na organização. Chega a um ponto onde um tripulante que segue as regras e se proclame contra uma situação de risco, pode ser encarado como um “reclamão” ou um “antiaéreo” e ganhar a reputação de alguém que “não veste a camisa da empresa”. Por outro lado, um funcionário que desvia das normas para atingir os resultados será visto como “colaborador proativo”, e acabará sendo favorecido pela administração. Com o tempo, os “reclamões” ficam pelo caminho, enquanto os que “vestem a camisa” sobem os degraus na hierarquia. Finalmente, a pessoa que acredita em quebrar as regras assume a gerência de operações e produz mais pressão em cima de quem interrompe um voo por causa de meteorologia, de desempenho marginal da aeronave, de manutenção ou jornada de trabalho. Para piorar ainda mais as coisas, os alto-administradores da empresa talvez conheçam pouco sobre os riscos da aviação e simplesmente aceitam a visão distorcida do “eficiente” gerente de operações que sempre cumpre a missão. A pressão sobre o tripulante neste ambiente doentio pode ser intensa. Um diretor de operações, certa vez, jogou uma pilha de currículos sobre a mesa de um piloto que havia interrompido um voo alegando motivos de segurança. A mensagem era clara: “tem bastante gente aí fora que pode ocupar o seu lugar”. Empresas conduzidas desta forma estão apenas preparando o terreno para o próximo acidente, que poderá acontecer bem mais cedo que se imagina.
A aviação executiva tem características bem peculiares. Pode  apresentar um alto nível de segurança, assim como pode estar muito vulnerável, se mal administrada. As ferramentas para desenvolvimento da segurança de voo passam pelo treinamento de tripulantes, pela padronização operacional, pela identificação de perigos e administração dos riscos e, finalmente, pelo estímulo a uma cultura que valorize fazer o que é certo. Se eventuais desvios permitem completar o voo e gerar lucro por algum tempo, cedo ou tarde conduzirão a acidentes, representando um sério revés para o desenvolvimento global da aviação executiva.

11 de abril de 2018

GUIA PARA EXCELÊNCIA NAS OPERAÇÕES DE VOO



Muitos pilotos, apoiando-se no fato de manterem suas habilitações técnicas em dia, entendem estarem satisfazendo as exigências legais para operar uma aeronave. Isto é verdade. Mas também deve ser claro para eles que um voo anual de verificação garante apenas que certos requisitos mínimos foram atingidos. Embora vários grupos de profissionais da aviação trabalhem sob uma estrutura formal de treinamento e reciclagem, muitos outros não possuem esta facilidade e precisariam tomar uma decisão pessoal para buscar o seu aprimoramento. O piloto que tem esta percepção reconhece que ainda existe muito a ser desenvolvido, embora possa não saber exatamente por onde começar. Justamente para mostrar o caminho do aperfeiçoamento profissional, um modelo de excelência em aviação foi delineado pelo Dr. Tony Kern em seu livro Redefining Airmanship. Fazendo analogia com a construção de uma edificação, Kern propõe um referencial composto por uma sólida base, vários pilares de sustentação e uma estrutura superior, que permitiria ao piloto se avaliar e identificar as áreas que precisa desenvolver.


DISCIPLINA
A primeira e a mais importante das fundações é o compromisso pessoal com a disciplina. Por definição, disciplina pode ser entendida como a observância e o cumprimento das normas e regulamentos. Dependendo do tipo de aviação, pilotos podem operar uma boa parte do tempo sem supervisão direta de seus superiores e depende do indivíduo ter integridade para seguir a regulamentação sem ninguém fiscalizando. Numa visão mais internalizada, disciplina pode ser entendida como a força de vontade para exercer um julgamento sensato quando existirem tentações e pressões para fazer o contrário. Sim, sempre existirão estímulos para se afastar dos procedimentos preconizados: pressões comerciais, pressa, vaidade, exibicionismo, preguiça, complacência ou mesmo a falsa noção de que as regras existem para proteger os menos capacitados. Desculpas não faltam, mas nenhuma delas justifica o alto preço que se paga, mais cedo ou mais tarde, por desviar-se das normas e regulamentos. O piloto deve comprometer-se incondicionalmente com a disciplina, pois as violações são contagiosas e degradam sorrateiramente a capacidade de julgamento e tomada de decisão. A aceitação de um pequeno desvio abre espaço para desvios cada vez mais frequentes e mais graves, sem que a pessoa se dê conta disto. A história da aviação está repleta de pilotos com excelentes habilidades de voo, mas que foram traídos por julgamentos falhos decorrentes da falta de disciplina individual. Sem esta base firmemente assentada, todo o restante da estrutura estará comprometido, por mais habilidoso que você seja, por mais que conheça a sua aeronave.

HABILIDADES
A segunda fundação do modelo é formada pelas habilidades de pilotagem. Existem quatro níveis crescentes em que um aviador poderia se encaixar. O primeiro é o da segurança e, neste estágio, geralmente estão os pilotos que terminaram sua qualificação inicial e acabaram de fazer seu cheque no equipamento. Operam com um nível mínimo que evite consequências adversas por falta de habilidades motoras. Com o tempo, após um período de experiência operacional na aeronave, atingem o grau da eficácia, onde completam o voo de maneira segura e também atingindo os resultados esperados. A grande maioria se sente confortável nesta condição, o que acaba estancando seu próprio crescimento. Aqueles que não se acomodam, tentam subir para o patamar da eficiência, onde aprendem as técnicas que permitem a realização do voo despendendo menos recursos. Neste estágio, atingem os objetivos propostos e ainda economizam tempo e recursos (com o cuidado de não comprometer a segurança, claro). Finalmente, o grau mais elevado de habilidade é o da precisão. O piloto tem um senso de autoavaliação altamente refinado e se motiva a um constante aperfeiçoamento. Nunca se satisfaz com os padrões existentes e busca a perfeição em todo voo, em cada detalhe. Embora difícil de ser alcançada, mais importante que a perfeição em si é o desejo constante de se aprimorar.

PROFICIÊNCIA
Voar um avião, ainda que por diversão, é assunto sério e o piloto deveria estar constantemente se avaliando quanto ao seu nível de proficiência, a próxima base do modelo de excelência. Mesmo quando trabalha sob os auspícios de uma empresa, com programas de reciclagem para mantê-lo atualizado, só o próprio piloto conhece realmente seu grau de competência. Alguns se submetem aos cheques anuais desejando secretamente que o examinador não descubra suas fraquezas. O lado negativo desta atitude é que elas vão aparecer no momento mais impróprio. Diversos pilotos passam anos sem simular um tráfego de emergência ou uma aproximação IFR com painel parcial. Alguns não sabem de memória os itens críticos do checklist de falha de motor ou não têm autoconfiança para fazer uma aproximação com forte vento cruzado. Elevar seus níveis de proficiência depende muito da vontade do próprio indivíduo. 

Um dos métodos mais simples e mais eficientes, tanto para preservar quanto para adquirir proficiência, é o chamado “voo mental”. Consiste em uma combinação de técnicas de visualização, prática de procedimentos e condicionamento cognitivo. Pode ser feito na cabine do avião ou sentado na sala de estar. É um simulador virtual barato. Munido apenas de um checklist, uma poltrona e sua imaginação, o piloto deve visualizar passo a passo as fases de operação que deseja aperfeiçoar. Os movimentos físicos devem ser os mesmos que faria se estivesse na cabine em voo. Ao simular procedimentos de emergência, suas mãos devem se mexer como se estivessem atuando nos sistemas necessários. Isto condiciona a resposta motora e torna a reação mais rápida e instintiva quando a situação exigir. Alguns pilotos, talvez iludidos pela sua vasta experiência, podem acreditar que o voo mental seria útil apenas aos novatos. Grande engano. É uma técnica que deve ser levada a sério e é talvez o melhor recurso, depois do simulador, para treinar procedimentos, técnicas e habilidades requeridas para um voo.

PILARES DO CONHECIMENTO
Além dos princípios básicos de disciplina, habilidades e proficiência, o exercício da profissão de aviador exige uma série de conhecimentos específicos para sustentar suas decisões operacionais. O primeiro pilar é o CONHECIMENTO DE SI próprio, de suas limitações físicas e psicológicas. Questione um piloto sobre decolar em uma aeronave com problemas mecânicos e a resposta seria um óbvio não. Mas se a pergunta for para o campo pessoal, sobre assumir os controles de voo sem estar em condições ideais, gripado, cansado ou estressado, a resposta pode variar. Existe uma tendência humana, muita nítida entre a comunidade de pilotos, de se achar acima dessas limitações fisiológicas ou psicológicas. Admitir para si próprio e para os outros que não está em boas condições é um espelho da sua autocrítica. Um piloto que se permita fazer um voo abaixo de sua melhor forma, não está considerando que, em eventuais situações anormais e de emergência, ele será exigido ao máximo e pode não ter condições de responder a altura. Mais importante ainda é o indivíduo estar alerta às suas reações quando for submetido a pressões externas ou internas, como pressão de horários ou uma tendência ao exibicionismo. A capacidade de resistir a estas forças é uma clara indicação do seu nível de maturidade.

Conhecimento da AERONAVE é outro pilar que sustenta a execução segura da atividade aérea. Os currículos de treinamento geralmente atendem aos mínimos requeridos por lei e um conhecimento mais profundo vai bem além destes mínimos. O estudo deve começar com uma leitura completa da descrição da aeronave e seus sistemas. Não adianta tentar memorizar tudo e o piloto deve separar o que é importante do que não é. Com uma base de conhecimento de sistemas, o aviador pode partir para o estudo do material que assegure a sua sobrevivência: as limitações da aeronave e as emergências. Este conhecimento pode salvar vidas e deve ser memorizado, inclusive usando o recurso do voo mental para condicionar as respostas psicomotoras dos procedimentos de emergência. Quando o piloto estiver tranquilo na execução destas ações, poderá partir para áreas mais avançadas, utilizando ocorrências reais para incentivar novos estudos. A internet é uma inesgotável fonte de informação. Diversas páginas de órgãos de investigação de acidentes, como as do CENIPA e do NTSB, disponibilizam relatórios de eventos que podem ser usados para conhecer as vulnerabilidades do tipo de aeronave. É uma técnica excelente, porque automaticamente dá relevância ao material que esta sendo estudado. Já imaginou poder evitar um acidente porque voce leu sobre um evento igual que já tenha acontecido? A conjugação de reciclagens contínuas e estudo focado em ocorrências fornece uma sólida base de aprendizado do equipamento. Aviadores que se acomodam porque conhecem o “suficiente” para voar a aeronave abrem caminho para a complacência e inibem a continuidade do aperfeiçoamento. Ninguém nunca vai ter certeza de que sabe o bastante para lidar com qualquer situação que apareça em voo. Mesmo os aviadores mais experientes terão dúvidas sobre sistemas e procedimentos. O receio de não saber tudo pode ser a motivação para continuar pesquisando e aprendendo. Aqueles que acham que já acumularam informação suficiente, provavelmente estão em maior risco. Estabeleça um sistema pessoal de aprendizado que funcione pra você e dedique algum tempo a ele até tornar-se um hábito. 

Um grande número de aviadores divide a cabine com outros tripulantes e precisa saber como se desempenhar em grupo. Uma EQUIPE sintonizada congrega conhecimento e experiência para confrontar as novas situações de voo. Os treinamentos de gerenciamento de tripulação (CRM) abordam habilidades de relações interpessoais, de liderança, comunicação e cooperação, entre outros. Trabalhar em equipe nem sempre é fácil, mas, se feito da forma correta, pode otimizar a segurança e eficiência da operação. 

Sob o foco do AMBIENTE estão o conhecimento do ambiente físico, envolvendo meteorologia e infraestrutura, bem como o ambiente regulatório, as normas que orientam e que balizam nossas ações no meio. O RISCO, outro dos pilares, está sempre presente nas atividades de voo. Para evitar o risco totalmente, evitaríamos o voo, o que não é nosso objetivo. Nossas decisões envolvem risco e o controle desse risco. Devemos estar preparados para os riscos conhecidos e planejar. Para este fim, é de grande valor conhecer o perfil da ATIVIDADE, as suas peculiaridades e suas armadilhas.  Neste ponto, o estudo de relatórios de acidentes ocorrido com o mesmo tipo de missão acaba fortalecendo os pilares do conhecimento e aumentando a segurança operacional.

CONSCIÊNCIA SITUACIONAL
Na medida em que aqueles pilares estejam bem construídos, juntamente com um entendimento do ambiente, da missão e dos riscos associados, facilitam que o piloto perceba melhor tudo que passa a sua volta. Esta percepção precisa do que está acontecendo consigo, com a sua aeronave e no ambiente, tanto agora quanto no futuro próximo, é chamada de Consciência Situacional (CS). Um exemplo clássico de baixa CS é o caso daquele jato de passageiros que ficou mais de uma hora circulando perto do aeroporto, enquanto a tripulação concentrava-se em resolver uma pane no sistema de trem de pouso, e acabou caindo por falta de combustível. Todo piloto precisa exercitar o conceito de “estar à frente da sua aeronave”. Para isto, deve ser capaz de identificar os elementos da situação atual, compreender o seu significado e projetar as implicações em cenários prováveis.

Pode haver três diferentes níveis de CS. No nível mais básico, o piloto simplesmente percebe o que está acontecendo, como uma luz de aviso no painel, sabe o que isto significa e reage. No segundo nível, ele coloca o evento dentro de um contexto maior, agregando significado ao fato. Um piloto voando um pequeno monomotor sobre terreno montanhoso deve interpretar uma indicação de baixa pressão de óleo de forma diferente da que se estivesse voando um multimotor no circuito de tráfego. No terceiro nível de CS, o piloto percebe e assimila o significado do evento, e também projeta as suas implicações para o futuro. Os inimigos da CS são a atenção canalizada, a distração e a saturação de tarefas, pois impedem que informações relevantes sejam percebidas oportunamente. Todo esforço deve ser feito para identificar o aparecimento destas condições durante o voo e na adoção de medidas para atenuar suas implicações no desempenho pessoal.

JULGAMENTO E TOMADA DE DECISÃO
Os vários elementos do modelo de excelência, incluindo disciplina, habilidades, conhecimento e consciência situacional, se conjugam para sustentar uma boa capacidade de julgamento. Decisões operacionais acertadas dependem da avaliação correta da situação geral e isto nem sempre é fácil no ambiente dinâmico do voo. Julgamentos deficientes têm sido apontados como o fator mais comum nas investigações de acidentes, muito mais do que falhas de pilotagem ou do equipamento. Quando o tripulante erra em suas decisões, provavelmente é por falta de suporte em alguma das áreas já mencionadas. O julgamento está intimamente relacionado com a personalidade do indivíduo, com a experiência, com a preparação pessoal, e deve ser visto como uma combinação de arte e ciência. A ciência pode ser aprendida e a arte deve ser praticada. É altamente recomendável que o piloto, após cada voo, faça uma autocrítica para determinar a qualidade de suas decisões, onde elas poderiam ter sido melhores e por que. Manter uma espécie de registro pode auxiliar muito neste processo de aprendizado. Assim como qualquer outra habilidade de voo, o julgamento também pode ser desenvolvido e, em última análise, será tão bom quanto o piloto queira que seja.

CONCLUSÃO
O modelo de excelência permite que o piloto se autoavalie e identifique áreas que precisa aprimorar. O desenvolvimento profissional deve partir de uma motivação interna. Nenhum aviador terá instrutores por toda a vida ou um programa de treinamento exclusivo para suas necessidades. Aquele que deseja o aperfeiçoamento contínuo, deve se tornar seu próprio mentor e elaborar seu currículo de treinamento. Se um piloto suspeita que suas capacidades individuais não estejam no nível que deveriam, ele tem a obrigação de corrigir isto. O piloto consciencioso reconhece a necessidade de estar sempre buscando seu melhor desempenho. Afinal de contas, não é ele que escolhe a oportunidade para mostrar seus talentos. É a oportunidade que o escolhe.




Referências:
Redefining Airmanship, Tony Kern
What All Good Pilots Do, Robert Besco

21 de março de 2018

COMPLACÊNCIA NAS OPERAÇÕES DE VOO



Maio de 2014. Um jato executivo Gulfstream G-IV ingressa na pista para decolagem do aeroporto de Bedford, EUA. Durante a corrida, ao atingir 125 kt (230 km/h), o piloto tenta puxar o manche para decolar mas os controles de voo não se movem. Já em alta velocidade, o comandante decide iniciar a frenagem, só que agora não há mais espaço suficiente. O avião ultrapassa o final da pista, colide com obstáculos no prolongamento, pega fogo e fica totalmente destruído. A bordo, os dois pilotos, a comissária de voo e mais quatro passageiros sofrem lesões fatais.





O NTSB, órgão americano de investigação de acidentes, conclui que a aeronave havia iniciado a corrida de decolagem com a trava dos comandos de voo acionada. Conhecida como Gust Lock, o dispositivo é usado para bloquear os comandos quando o avião está no solo e evitar que as superfícies de controle sejam danificadas devido à ação de ventos fortes.

A primeira vista, parece que os tripulantes esqueceram um dos procedimentos previstos antes da decolagem, a liberação das travas de comandos de voo. Mas uma pesquisa mais profunda indicou outros fatores presentes. Até o momento da decolagem, o gravador de voz de cabine (CVR) não registrou a leitura de nenhum dos cinco checklists previstos (Before Starting Engines, Starting Engines, After Starting Engines, Before Takeoff e Lineup checklists). Dentre estes cinco checklists, dois deles previam ações de liberação da travas dos comandos e a verificação de que os comandos estavam livres antes da decolagem.

O esquecimento de uma ação é algo que pode acontecer quando se executa uma tarefa de memória e, por isso mesmo, as boas práticas aconselham e os regulamentos de aviação determinam o uso de uma lista de verificações como auxílio durante as operações da aeronave. Para maior eficiência, os itens de checklist devem ser comunicados verbalmente em voz alta por um dos tripulantes e respondido pelo outro. Embora seja possível que um dos tripulantes possa ter realizado os procedimentos de forma silenciosa, tudo indica que os checklists não foram executados na preparação para esse voo. Adicionalmente, a entrevista com outro piloto que havia voado com o comandante da aeronave acidentada revelou que ele fazia os procedimentos de memória e não pedia o uso do checklist.

Porém, revelador mesmo foi o fato constatado na leitura do gravador de voo, o Quick Access Recorder (QAR). Análise das 175 decolagens gravadas no período dos últimos nove meses, incluindo a do dia do acidente, indicou que aqueles dois pilotos deixaram de executar um cheque completo dos comandos de voo em 98% das decolagens.

Agora tente imaginar uma situação hipotética. Digamos que um terceiro piloto, você mesmo, viajando no “jump seat” com esta tripulação, indagasse no momento do taxi sobre os cheques de comando de voo que não foram realizados. Que tipo de resposta poderia obter de uma tripulação que em 98% dos casos negligenciou este procedimento e nada de errado aconteceu? Por que você acha que eles estavam agindo assim?

Depois da tragédia consumada, tudo fica mais evidente e as perguntas se avolumam. Por que os tripulantes estavam operando em desrespeito aos procedimentos? Sim, eles haviam passado por voos de cheque, portanto sabiam o que era o certo, mas decidiram não fazer. Estavam se desviando dos procedimentos intencionalmente ou a larga experiência no tipo de equipamento foi contribuinte para isso parecer para eles como um risco menor? Será que o fato de os dois voarem juntos há muito tempo foi fator para criar uma atmosfera de satisfação e de leniência com a situação? Será que a familiaridade com o equipamento e com o tipo de voo afetou suas posturas profissionais com o passar do tempo?

Estas perguntas levam o assunto na direção de um comportamento conhecido como Complacência nas operações de voo. Complacência é uma atitude pessoal de relaxamento e de rebaixamento dos padrões na execução de uma tarefa ou na tomada de uma decisão. Ela ataca principalmente aqueles que se julgam experientes e profundamente familiarizados com seu tipo de atividade, pois estas condições geram uma diminuição do nível de alerta e do cuidado com os detalhes. A complacência é uma postura de condescendência e de tolerância com comportamentos e situações que estejam abaixo do ideal. Geralmente é acompanhada pela baixa percepção do perigo que esta postura representa, o que por si só já é um grande perigo. Pilotos se tornam complacentes quando perdem aquele saudável senso de respeito pelas suas operações, quando acham que não precisam mais se preparar tanto para um voo, quando acham que checklist é para os novinhos, quando tomam decisões que diminuem as margens de segurança.

Estando envolvido com investigação de acidentes há cerca de trinta anos, acredito firmemente que a complacência seja um dos fatores operacionais mais freqüentes em acidentes aéreos, embora seja difícil quantificá-la durante uma investigação. Os sistemas de uma aeronave moderna são altamente confiáveis e apresentam baixíssimas taxas de falha. Em consequência, os pilotos operam com um nível relativamente baixo de preocupação quanto aos sistemas, o que aumenta sua sensação de conforto e diminui o nível de alerta. Com o equipamento contribuindo cada vez menos, a grande maioria dos acidentes está relacionada com falhas humanas e desvios operacionais, a maioria destes desvios se originando da complacência em relação ao cumprimento dos padrões.

É claro que todo ser humano está sujeito a experimentar a complacência. Ela invade áreas que no passado foram ocupadas pelo nosso mais forte interesse, pelo foco e pela nossa atenção mas que, com o passar do tempo, caíram de prioridade e acabaram se transformando em rotina e tédio. A complacência em si não é uma anomalia, uma vez que é resultado natural da rotina, da repetitividade de tarefas e da falta de novos estímulos. O grande desafio é identificá-la e adotar ações para combatê-la. É muito fácil perceber complacência no comportamento dos outros, mas muito difícil percebê-las em nós mesmos. A gente sempre tem uma desculpa.

Existem vários sintomas de que a complacência se instalou e para os quais devemos estar atentos, todos interrelacionados. O mais claro é a aceitação de baixos padrões de desempenho, ou seja, deixar de executar suas ações com o mesmo nível de cuidado e de atenção aos detalhes que se fazia no passado. Outro sintoma é a diminuição da vontade de se manter proficiente na atividade, ou seja, o profissional não se esforça mais para se manter atualizado e com a competência necessária. A pessoa vai apresentar uma postura de satisfação com as coisas do jeito que estão, o que gera uma falsa sensação de bem estar e afeta o seu julgamento na avaliação dos riscos. Com o passar do tempo, acaba desenvolvendo uma atitude de excesso de autoconfiança nas suas habilidades e que termina naquele famoso sentimento de invulnerabilidade, quando acha que acidentes só acontecem com outros e nunca com ele. São estes os pilotos com maior chance de assumir riscos desmedidos e de se envolverem em acidentes.

Embora qualquer piloto esteja vulnerável a ser uma vítima da complacência, aqueles que trabalham em empresas menores, longe do alcance dos setores de treinamento e padronização de uma grande linha aérea, talvez estejam mais suscetíveis. Em um grupo pequeno, todos os pilotos se conhecem e sentem-se confortáveis uns com os outros e aprendem a fazer as coisas sem criar atritos. Na medida em que se sentem mais confortáveis, as tarefas mais chatas deixam de ser feitas e, quanto mais atalhos são tomados sem causar incidentes, mais ficam tentados a repeti-los. Tudo isto vai surgindo sem que a pessoa perceba.

Pilotos deixam de seguir os procedimentos padrão por se julgarem conhecedores profundos do avião ou do tipo de voo. Outras vezes, tomam decisões que diminuem as margens de segurança que existem nas normas e regulamentos de aviação por se sentirem confortáveis com uma condição após repeti-la por várias vezes. Até o dia em que algo acontece, até o dia em que ele comete um erro (sim, você comete erros), mas agora as margens de segurança e os procedimentos não estão mais lá para protegê-lo.


COMBATENDO A COMPLACÊNCIA

Existem várias maneiras de combater a complacência nas operações de voo. A primeira e mais importante consiste em aceitar que esteja acontecendo com você.  Admita a possibilidade, você é um piloto experiente, faz esse trabalho há anos e repetidas vezes, conhece tudo de trás para frente.  Você acredita mesmo que seu nível de alerta e de atenção aos detalhes hoje é o mesmo de quando começou na atividade? Ou você agora está mais relaxado, às vezes relaxado demais? Será que você ainda conhece os procedimentos com o mesmo nível de proficiência que os pilotos que acabaram de sair do treinamento? Se entendermos que é possível de acontecer, então vejamos que ferramentas podemos usar para combater a complacência:
  • Estudo: procure estar atualizado com a sua aeronave e com a sua operação, o que nem sempre é fácil pois a aviação está em evolução constante; por isso mesmo, estar atualizado exige algum esforço da sua parte e envolve reler os manuais de sistemas, os procedimentos normais e de emergências, boletins operacionais e os regulamentos de tráfego aéreo, entre outros; uma outra ação bastante recomendável é a leitura de relatórios de acidentes com aeronaves iguais à sua ou aeronaves diferentes mas com o mesmo tipo de operação; as fontes de informação são inesgotáveis e o aprendizado é muito grande; aprenda com o erro dos outros.
  • Disciplina: com aquele conhecimento na cabeça, é preciso haver uma decisão consciente de empregá-lo todo o tempo, não somente quando for conveniente; voe e opere a sua aeronave conforme os padrões recomendados; a complacência corrói a disciplina e a falta de disciplina alimenta a complacência; é um circulo vicioso, traiçoeiro, que você precisa perceber e cortar antes que o pior aconteça;
  • Companheirismo: quando você voa como parte de uma tripulação, a melhor ferramenta contra a complacência é ter ao seu lado um colega que esteja monitorando a operação e que esteja disposto a falar; nenhum ser humano é perfeito e nenhum piloto opera com perfeição todo o tempo; erros operacionais acontecem a toda hora e ter alguém disposto a falar vai aumentar sua percepção sobre seus erros; lembre-se, é muito mais fácil identificar a complacência nos outros do que em si mesmo, portanto não é má idéia confiar na avaliação do seu parceiro; e, quando receber uma crítica, sua reação deve ser compatível, ou seja, você não deve desmerecer o comentário do colega que está disposto a te ajudar;
Complacência é um fator significativo em acidentes aéreos e surge sorrateiramente, rebaixando os padrões até o momento em que os riscos nem mais são percebidos com clareza, como vimos no acidente com o Gulfstream. Assim, é importante reconhecer as condições que facilitam seu aparecimento, identificar os seus sintomas e ter disposição para combatê-los. As ferramentas estão aí e são muito mais fáceis de serem adotadas do que se ver envolvido nas consequências de um acidente. Com todas estas informações, esperamos ter cada vez menos casos como daquele piloto que, perguntado se sabia a diferença entre ignorância e complacência, respondeu: “eu não sei e não me importo...”.



Referências:
- Complacency in Risk Management, Don Andrews
- Edge of Envelope Flying, Russel Williams
- Countering Complacency, James Albright
- Complacency in the Flight Department, Mario Pierobon
- The Curse of Complacency, Terry Tolleson
- Complacency, Eddie Haskel

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