31 de janeiro de 2019

VALE A PENA APROXIMAR COM RAMPA DE BAIXO ÂNGULO?


Em agosto de 2010, um jato regional de passageiros EMB-145 fazia um voo de Guarulhos para Vitória da Conquista, BA. Na aproximação final para um pouso visual diurno na cabeceira 15, a aeronave colidiu com os trens de pouso principais antes da cabeceira. O avião arrastou-se sobre a fuselagem por cerca de 300 metros e saiu pela lateral da pista, sofrendo danos substanciais. O Relatório Final de investigação apontou que, quando o acidente ocorreu, a aeronave estava realizando uma rampa de aproximação mais baixa do que o normal.
Aproximações de baixo ângulo têm sido causa de acidentes aéreos, mesmo com tripulantes experientes e voando aeronaves avançadas, provocando casos tanto de toques antes da cabeceira quanto o oposto, excursões no fim da pista por pouso longo. Geralmente estas aproximações de baixo ângulo estão associadas a dois contextos principais: ou derivam de ilusões visuais - devido à geometria da pista e condições ambientais - ou são consequência de decisões conscientes por parte dos pilotos devido a uma interpretação incorreta do desempenho de pouso.
O que os pilotos podem fazer para diminuir a chance de se envolverem neste tipo de acidente?

ILUSÕES VISUAIS
As ilusões visuais afetam a percepção da altura, da distância ou da rampa de aproximação e normalmente induzem o piloto a efetuar correções que levam o avião a se desviar da trajetória pretendida. Quando se opera em uma pista mais estreita que o de costume, por exemplo, a tendência é acreditar que o avião está mais alto do que o real, induzindo a arredondamento tardio e toque brusco. Quando se opera em pista com aclive, existe uma ilusão de que a aeronave está com rampa mais íngreme que o usual e o piloto insere uma correção para diminuir o ângulo da rampa, resultando em uma aproximação com baixo ângulo e, eventualmente, levando ao toque antes da cabeceira.

Pistas de pouso em aclive ou declive induzem a ilusões 
visuais e alteração na rampa de aproximação

No caso de Vitória da Conquista, ao que tudo indica, ambos os fatores de ilusão visual estavam presentes. Procedente de Guarulhos, onde a pista tem 45m de largura, e aproximando para a estreita pista de 22 metros do destino, os pilotos teriam sido induzidos à ilusão de que o avião estava mais alto do que o real. Além disso, a parte inicial da pista apresenta um pronunciado aclive, o que acaba passando a percepção de rampa mais alta e induzindo a tripulação a fazer correções que resultam em rampas baixas e um arredondamento mais próximo ao solo. O relatório de investigação aponta que o piloto viu o VASIS com indicações vermelhas, mas que mesmo assim teve a impressão de estar na rampa correta e continuou a aproximação para o acidente.
Também existem ilusões visuais associadas ao ambiente. Uma delas é o Black Hole.  Ocorre quando se faz uma aproximação em período noturno para uma pista isolada, sem muitas luzes em volta. No início da aproximação, o piloto tem certa percepção do aspecto visual da pista, um determinado ângulo na visada entre o início e o final da pista. Na medida em que se aproxima mantendo a rampa correta, este aspecto visual vai se modificando e este ângulo vai abrindo pela diminuição da distância, mas o piloto nem repara nisso quando existem outras referências visuais no solo. Entretanto, no caso de Black Hole, ao tentar manter este mesmo aspecto visual, este mesmo ângulo de visada entre o inicio e o final da pista, enquanto se aproxima e sem outras referências no terreno escuro, a aeronave acaba ficando cada vez mais baixa na rampa de aproximação, provocando toque antes da pista.

O efeito Black Hole - no início da aproximação, o piloto tem uma percepção sobre a relação de aspecto da pista (ângulo entre o início e o final da pista). Se o piloto tentar manter constante esta mesma relação de aspecto a medida em que se aproxima, vai voar em trajetória curvilínea e muito mais baixo do que a rampa recomendada.
Outra condição ambiental - pouco comum em nosso país, mas que por isso mesmo requer atenção de quem viaja para o exterior - é o chamado Whiteout. Ocorre quando aproximando para pistas cobertas com neve, em atmosfera com horizonte indefinido, sem sombras, ou seja, tudo muito claro e induzindo à uma perda de noção de profundidade. Tanto no caso de Black Hole, quanto de Whiteout, é muito importante seguir os indicadores visuais de aproximação para refrear qualquer tendência de aproximar muito baixo.

DECISÕES OPERACIONAIS
O segundo contexto comum para aproximações de baixo ângulo ocorre quando se vai operar em pista curta e o piloto conscientemente decide por uma aproximação baixa com a intenção de aproveitar o máximo do tamanho de pista. O piloto toma esta decisão por entender que a rampa mais baixa vai resultar em menores distâncias de pouso, mas não considera outros fatores que afetam mais gravemente a segurança.
Quando comparada com uma aproximação normal, a decisão de aproximar com baixo ângulo remete a algumas considerações:

  • Baixos ângulos de aproximação aumentam a dispersão longitudinal do ponto de toque, tanto para mais quanto para menos, com evidentes desvantagens para a segurança, seja provocando toque antes da pista, seja provocando um pouso longo com excursão na cabeceira oposta;
  • Para manter a mesma velocidade de referência (Vref) em uma aproximação de baixo ângulo, uma tração maior é requerida dos motores; por estar operando em rotação mais alta, o tempo de desaceleração (spool-down) dos motores a reação a partir do momento da redução para idle é mais longo, retardando a desaceleração da aeronave;
  • Para a mesma velocidade indicada, uma rampa mais baixa resulta em componente maior na velocidade horizontal e menor na velocidade vertical;
  • Devido à menor velocidade vertical, há uma tendência maior de flutuação sobre a pista no arredondamento, retardando o ponto de toque e o início da frenagem; baixas velocidades verticais também são prejudiciais  quando operando em pistas contaminadas por dificultarem o rompimento da camada de contaminação, retardando o contato dos pneus com a pista e, portanto, afetando a eficiência da frenagem;

Assim, a aparente vantagem de uma aproximação de baixo ângulo, na verdade resulta em um aumento no risco da operação, pois pode afetar negativamente o desempenho de pouso devido à maior velocidade horizontal, ao maior tempo de spool down dos motores, maior flutuação e maior dispersão longitudinal do ponto de toque, tanto para mais quanto para menos.

Quanto mais baixo o ângulo de aproximação, maior a  possibilidade de dispersão longitudinal do ponto de toque, ocasionando tanto um pouso antes da cabeceira, quanto excursão de pista na cabeceira oposta.
A desaceleração do avião no pouso consiste em um processo de dissipação da energia total da aeronave. Normalmente, o piloto pensa apenas na parte realizada no solo, pelos freios, mas não considera que também existe uma componente no ar, geralmente pouco compreendida. O arredondamento é uma parte importante da equação de desempenho de pouso pois consome ainda no ar parte da energia total da aeronave.  Quando se aproxima com rampa de baixo ângulo, a manobra de arredondamento tem curta duração, pouca energia é consumida e existe maior tendência de flutuação; quando se aproxima com maior ângulo, o arredondamento começa mais cedo, dura um tempo maior e mais energia é consumida. Assim sendo, mantendo iguais os demais fatores, uma rampa de aproximação mais íngreme resultará em menor distância total de pouso, pois a manobra de arredondamento será mais longa e mais energia será consumida no processo de deter a razão de descida da aeronave (figura abaixo).


Se o arredondamento for voado com precisão e repetibilidade, quanto mais íngreme a aproximação menor a distância de pouso, devido a maior duração do arredondamento e consequente maior absorção de energia para deter a razão de descida (fonte: n91cz.net)

De uma forma geral, os eventos intencionais de aproximação com rampa baixa iniciam-se devido a uma preocupação do tripulante em relação à distância de pouso e sua decisão de tocar logo no início da pista. Quando há essa preocupação, nada melhor do que consultar as tabelas de desempenho de pouso da sua aeronave e entender o que elas representam. As distâncias de pouso apresentadas nos manuais consideram que a aeronave passou sobre a cabeceira da pista a 15m (50ft) de altura na velocidade de referência (Vref), com uma rampa de - 3º, percorreu certa distância no ar até tocar o solo e mais uma distância no solo até a parada total, normalmente assumindo que os reversores do motor não são utilizados.

A distância de pouso do seu manual inclui a distância percorrida no ar cruzando a cabeceira a 50ft de altura

Dependendo do tipo de certificação, o seu manual pode apresentar a distância demonstrada de pouso, ou seja, aquela distância obtida nos ensaios de certificação – também chamada de distância não fatorada. Ou pode apresentar a distância requerida, que acrescenta uma margem de cerca de 60% sobre os valores obtidos nos ensaios – também chamada de distância fatorada. Assim sendo, a distância requerida para pouso já tem embutida uma margem de segurança para eventuais pequenas variações na técnica utilizada, enquanto a distância demonstrada não tem. Se o piloto está muito preocupado com a distância de pouso, grande chance de estar operando fora das limitações previstas para aquelas condições.
Outro contexto comumente observado em aproximações de baixo ângulo decorre quando a aeronave tem falha de flaps. Nesta situação, o aparelho estará aproximando com velocidade mais alta e o piloto decide tocar logo no inicio da pista, aproximando-se com uma rampa baixa. Nestes casos, na hora do arredondamento o piloto se surpreende com a ausência de arrasto aerodinâmico e com a reduzida velocidade vertical, e acaba permitindo uma flutuação excessiva da aeronave. Quando, por qualquer motivo, o flap não está na posição de pouso, o arrasto é bem menor que o usual com o flap estendido e, se o piloto utilizar a mesma técnica de pouso que usa com flaps, provavelmente o avião vai flutuar, desperdiçando em voo pista que poderia estar sendo usada para frenagem no solo. No caso de falha de flap, recomenda-se a aproximação com rampa convencional, com o cuidado e a preocupação de comandar o toque no solo assim que terminar o arredondamento, evitando a flutuação da aeronave e permitindo o uso dos freios o quanto antes.
Outro aspecto que os pilotos normalmente não levam em conta é a chamada Altura entre a Trajetória dos Olhos e das Rodas (ATOR) na aproximação para pouso. Não é simplesmente a altura entre a cabine e o trem de pouso com a aeronave estacionada e em repouso. A ATOR é definida como a distância vertical desde os olhos do piloto até a parte mais baixa da aeronave na configuração de pouso com amortecedores estendidos, na atitude e na trajetória em que se dará uma determinada rampa de aproximação.

A altura entre a trajetória dos olhos do piloto e  a trajetória das rodas em atitude de aproximação é maior do que com a aeronave em repouso no estacionamento.

No momento em que os olhos do piloto cruzam a cabeceira da pista, as rodas ainda não o fizeram, de forma que o piloto precisa levar em conta as distâncias horizontais e verticais que ainda precisam ser percorridas com a aeronave em descida para o trem de pouso chegar sobre a pista sem tocar no solo antes. Quando mais comprido o seu avião e quanto maior a atitude da aeronave na aproximação, mais importante será este fator. Por este motivo, o ponto de toque deve ser planejado para acontecer na conhecida marca de 1000ft após o inicio da cabeceira. O piloto deve estar consciente deste ponto de visada e compreender o impacto de efetuar aproximações com baixo ângulo.
Várias destas condições estiveram presentes em outro acidente, desta vez envolvendo um jato executivo Global 5000 aproximando-se para pouso no aeroporto de Fox Harbor, Canadá. A aeronave efetuou uma rampa de aproximação baixa, que culminou com o toque no solo dois metros antes da pista 33 do aeródromo. O trem de pouso principal foi danificado ao atingir a borda da pista e o controle direcional foi perdido por causa dos danos no trem principal direito. A aeronave desviou-se para o lado direito da pista e parou a 300 metros do ponto inicial de aterrissagem. Dois ocupantes sofreram ferimentos graves e a aeronave teve grandes danos estruturais. O conceito de altura do olho do piloto foi fator neste acidente. Os tripulantes tinham experiência anterior no Challerger 604. Não levaram em conta a diferença de tamanho e de atitude de aproximação do Global 5000. A aproximação que levou ao toque antes da pista neste acidente não teria tido a mesma consequência no Challenger. Para proteger destas variações nos tamanhos dos aviões, as aproximações devem ser planejadas para a marca de 1000ft após a cabeceira.

Considerando a mesma posição dos olhos do piloto no cruzamento da cabeceira, ao usar a mesma posição de olhos do Challenger 604 no Global 5000, os pilotos criaram as condições para a aeronave tocar no solo antes da cabeceira.

Neste evento, a falta de monitoramento da automação também foi fator contribuinte. Por estar com rampa mais baixa, a aeronave cruzou 50ft de altura 200 metros antes de chegar à cabeceira. Com isso, o auto-throttle entrou no modo RETARD e trouxe as manetes de tração para IDLE contribuindo ainda mais para o afundamento e o toque antecipado no solo. Outro aspecto curioso deste acidente foi que, apesar de estarem preocupados com o comprimento reduzido da pista, os tripulantes optaram por selecionar o modo LOW do autobrake, para beneficiar o conforto dos passageiros.

Global 5000 acidentado por tocar antes da cabeceira da pista, no Canadá
Em novembro de 2014, ocorreu um acidente com um cargueiro militar C-130, durante o pouso em uma base na Antártida. Embora o Relatório Final de investigação de aeronaves militares não seja disponibilizado ao público, existem vídeos que mostram a aeronave aproximando-se com rampa de baixo ângulo e também o momento do contato das rodas do trem de pouso antes de pista. Os motivos desta aproximação com baixo ângulo não estão acessíveis, mas podemos pensar hipoteticamente, como ferramenta de aprendizado, que uma preocupação com o reduzido comprimento da pista levando à técnica de aproximar com baixo ângulo, e uma possível condição de Whiteout talvez tenham sido fatores contribuintes para o acidente.


Em agosto de 2019, um Douglas C-118 também perdeu o trem de pouso ao tentar tocar logo no início da cabeceira em uma pista remota no Alaska.




Não faltam exemplos sobre os riscos associados com aproximações de baixo ângulo e as suas graves consequências. As recomendações são claras: no planejamento, consulte as cartas de desempenho para conhecer a distância de pouso necessária e ajustar a sua expectativa. Faça aproximações com a rampa recomendada visando o toque na marca dos 1000ft. Não deixe a aeronave flutuar no arredondamento, especialmente se estiver sem flaps. Utilize os dispositivos de desaceleração francamente, logo após o toque no solo, mesmo que isso afete o conforto dos passageiros.
Em último caso, se algo der muito errado e a distância percorrida no seu pouso for maior do que o comprimento da pista, você vai ultrapassar a cabeceira oposta a 20 ou 30 kt, o que é bem menos grave do que tocar antes da pista voando com 120 kt. A escolha é sua!


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As orientações deste texto são genéricas e tem a intenção de complementar as técnicas previstas no manual de voo da sua aeronave, ao invés de substituí-las. Em caso de conflito, deve se seguir o manual do fabricante.


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