25 de janeiro de 2021

ACIDENTES FATAIS COM BIMOTORES LEVES - O ERRO CLÁSSICO


No dia 24 de janeiro de 2021, foi noticiado um acidente com aeronave Beechcraft Baron B55 nas proximidades da pista particular da Associação Tocantinense de Aviação (SWEJ), no estado do Tocantins. A aeronave teria se acidentado após a decolagem, causando ferimentos fatais a todos os ocupantes.

Como sempre, acidentes com bimotores leves são cercados de especulações sobre o desempenho desta classe de aeronave quando um motor está inoperante. Muitas opiniões sem fundamento passaram a circular massivamente pelas redes sociais, até em grupos especializados, podendo confundir o entendimento que um piloto de bimotor leve deveria ter para operar estas aeronaves com segurança.

Vamos listar aqui fatos e prováveis deduções destes fatos (alguns valores são estimados e podem variar de acordo com o número de série da aeronave).

O Baron B55 é uma aeronave bimotora leve, com capacidade para até seis ocupantes. O peso básico vazio é de aproximadamente 3.236 lb e o peso máximo de decolagem é de 5.000 libras, resultando em uma carga útil aproximada de 1764 lb (800kg) para ser dividida entre combustível, os seis passageiros e bagagem. Tem capacidade para até 136 galões de combustivel (cerca de 816 libras/370 quilos).

A aeronave faria a rota de SWEJ até SBGO (Goiânia), uma distância de aproximadamente 450NM. Considerando a quantidade de passageiros, bagagem e combustível, pode-se estimar que estaria operando próximo ao peso máximo de decolagem.

Distância de SWEJ aSBGO de cerca de 450 NM
De SWEJ a SBGO são aproximadamente 450 NM


A aeronave decolou de SWEJ, uma pista de 1026m de comprimento a 988ft de altitude. Um Baron B55 no peso máximo de decolagem, com temperatura ambiente de 25ºC e vento calmo, necessita cerca de 520m (1700ft) de corrida no solo e cerca de 760m (2500 ft) para superar obstáculo de 50ft de altura. A distância de aceleração e parada, considerando uma velocidade de decisão de 84 nós, é de aproximadamente 1097m (3.600ft).

Distância de decolagem do B55 sobre obstáculo de 50ft seria de 760m (2.500ft)

A distância de aceleração e parada do B55 seria de 1097m (3.600ft)


A aeronave foi encontrada aproximadamente a 500 metros da pista (foto principal). Não tenho informação se foi no setor da decolagem ou se no setor de aproximação em um eventual retorno para pouso. As características dos destroços são compatíveis com um impacto de baixa velocidade horizontal e elevada razão de afundamento. O fogo e explosões pós-impacto, relatados por testemunhas, são compatíveis com a existência de combustível nos tanques da aeronave. Os seis ocupantes sofreram lesões fatais.

NINGUÉM AINDA SABE o que aconteceu neste evento e a tarefa e autoridade de determinar as causas é tão somente do CENIPA. Porém, a quantidade de opiniões emitidas por pilotos nas redes sociais, sem qualquer fundamento técnico sobre desempenho de um bimotor leve com falha de motor em voo, nos traz elevada preocupação e, novamente, a oportunidade de relembrar alguns conceitos essenciais sobre a operação desta categoria de aeronaves, independente do que ocorreu neste evento.

O Beechcraft Baron 95-B55 voou pela primeira vez em 1960 e foi certificado conforme os requisitos do Civil Aviation Regulation Part 3 (CAR 3), anterior ao CFR Título 14 Parte 23. O Pilot’s Operating Handbook / Airplane Flight Manual da aeronave apresentam as cartas de desempenho de gradiente de subida com um motor inoperante. Nas condições estimadas do acidente, considerando a aeronave no peso máximo de decolagem, o gradiente de subida com um motor inoperante (OEI) seria de aproximadamente 3%. Este é o valor mostrado no manual e os pilotos tendem a acreditar que uma falha na decolagem vai resultar neste gradiente de subida. Mas isto NÃO é verdadeiro.

- ISTO NÃO É VERDADEIRO -

Gradiente de subida do BE55 com um motor inoperante (OEI)

A carta de gradiente de decolagem com um motor inoperante define, no seu canto superior esquerdo, as condições para aquele gradiente ser alcançado: potência de decolagem, trem de pouso recolhido, flaps recolhidos e hélice embandeirada. Portanto, se alguma destas condições não estiver presente, a aeronave não apresentará o desempenho mostrado na carta. Se a falha ocorrer antes do recolhimento do trem, antes do recolhimento do flap ou antes do embandeiramento da hélice, o avião não terá o desempenho mostrado na carta. E ninguem pode prever qual será o desempenho pois isso não fez parte da campanha de testes da aeronave. Por que não?

A categoria de aviões bimotores leves está apenas um degrau acima dos monomotores em termos de segurança operacional e seu desempenho é regulado atualmente pelos requisitos de certificação do CFR Título 14 Parte 23 (ou o equivalente RBAC 23 no Brasil). Os requisitos em vigor na época de homologação do Beech Baron B55, CAR 3, diziam o seguinte:

Sec. 3.85a - Requisitos de Subida.

(a) ...

(b) Subida com um motor inoperante: todos os aviões multimotores que tiverem uma velocidade de estol Vs0 maior do que 70mph devem ter uma razão de subida constante de ao menos 0,02 Vs² em pés por minuto a uma altitude de 5.000 ft com o motor crítico inoperante e: 

 (1) Motor restante a não mais que a potência máxima contínua;

(2) Hélice do motor inoperante na posição de mínimo arrasto;

 (3) Trem de pouso retraído;

 (4) Flaps das asas na posição mais favorável; e

 (5) Cowl flaps na posição usada nos testes de refrigeração especificados na seção (...).


Parte da tabela sobre requisitos de subida da Advisory Circular AC-23-8C, englobando as aeronaves com peso de decolagem menor do que 6.000lb (posterior à certificação do Baron 95-B55)

Os requistos CAR 3 aplicados ao Beech Baron B55, assim como o susequente CFR Título 14 Parte 23 aplicável às aeronaves certificadas depois de 1965, em nenhum momento abordam desempenho de subida em configuração de decolagem para essa classe de aeronaves. Os requisitos para aviões multimotores com menos de 6.000lb de peso máximo exigem desempenho positivo apenas em configuração lisa, hélice embandeirada e a 5.000ft de altitude. Portanto, NÃO EXISTE REQUISITO para aviões bimotores leves, com peso menor do que 6000lb, demonstrarem desempenho positivo de subida em CONFIGURAÇÃO DE DECOLAGEM. Após uma falha de motor na decolagem, aviões desta categoria devem ajustar a configuração aerodinâmica e manter ou a velocidade de melhor ângulo de subida monomotor (Vxse) ou de melhor razão de subida monomotor (Vyse), respectivamente 91kt e 100kt para o B55, pois estas velocidades resultarão no melhor desempenho que o avião pode fornecer para aquelas condições operacionais. 

A tentativa de reduzir a velocidade para manter o voo provoca aumento significativo do arrasto aerodinâmico e coloca a aeronave muito próxima da velocidade de estol ou da velocidade mínima de controle (Vmca), na maioria das vezes levando ou à um impacto de baixa velocidade mas com elevada razão de descida (estol) ou perda do controle direcional e impacto em espiral descendente (Vmca), ambos fatais. Após uma falha de motor, o piloto deve manter a velocidade e a configuração recomendada pelo manual pois isto resultará no melhor desempenho, mesmo que seja uma descida. E se resultar em descida, o piloto deve preparar o pouso forçado em condições controladas, na velocidade de descida recomendada, sem deixar a aeronave estolar antes do toque. Não há mais nada a ser feito.

O próprio manual do B55, no capítulo de procedimentos de emergência, define que, no caso de uma falha de motor logo após a saída do solo e em voo, um pouso imediato é recomendável independente do peso da aeronave. O manual declara que a continuação do voo não poderá ser garantida se o peso de decolagem exceder o peso determinado pelo gráfico de peso de decolagem. 

Procedimentos de Emergência do Beech Baron B55
 

Vejam que o texto do procedimento de emergência não deixa tão claro para o piloto que o desempenho mostrado no gráfico só ocorre com a aeronave na configuração lisa, com trem e flap recolhidos e com a hélice do motor inoperante embandeirada. Muitos pilotos acreditam, erroneamente, que terão gradiente positivo na decolagem, mas isto não é verdade enquanto a aeronave não estiver na configuração prevista na carta. Ninguém sabe qual o desempenho do avião com trem e flaps baixados e com hélice não embandeirada pois isso nunca foi testado nem pelo fabricante, mas alguns pilotos nas redes sociais chegam até a citar valores e regulamentos que não existem. Já imaginaram o quanto estas opiniões equivocadas ou sem fundamento podem influenciar negativamente um piloto menos avisado e provocar outra tragédia? 

Neste tipo de emergência em bimotores leves, o foco deve ser manter o controle da aeronave e a velocidade recomendada no manual, mesmo que isso leve ao pouso forçado. Mas o que acontece na prática, o tal erro clássico, é que com o arrasto excessivo do trem de pouso baixado, dos flaps estendidos e da hélice em molinete, o piloto tenta extrair um desempenho que a aeronave não tem e acaba permitindo um decréscimo da velocidade até chegar no estol ou na Vmca, tornando-se mais uma vítima do clássico acidente fatal com bimotores leves.

Mais uma vez, ninguém sabe ainda o que aconteceu no acidente com o B55. Enquanto a investigação não termina, enfatizamos a importânica de conhecer o desempenho e limitações do seu bimotor leve, sabendo em cima de que base de certificação ele foi homologado, assim como os procedimentos de emergência: isto é crucial para garantir a sobrevivência dos ocupantes em caso de falha de um motor em voo.






ACIDENTES FATAIS COM BIMOTORES LEVES - O ERRO CLÁSSICO

No dia 24 de janeiro de 2021, foi noticiado um acidente com aeronave Beechcraft Baron B55 nas proximidades da pista particular da Associação...