3 de fevereiro de 2020

IMC INADVERTIDO EM HELICÓPTERO

Um helicóptero bimotor S-76, com cinco pessoas a bordo, decola de um heliponto em Cubatão, litoral de São Paulo, com destino ao aeroporto de Navegantes (SC). O plano de voo era visual, direto sobre o mar, mantendo 4.500 pés de altitude. Ao aproximar-se do litoral catarinense, a tripulação informou estar descendo para 500 pés. A cinco minutos de Navegantes, reportou ao controle de tráfego estar subindo para 1000 pés para se manter em condições visuais. Em meio ao denso nevoeiro que predominava na região, testemunhas afirmaram ter ouvido o som do helicóptero e uma forte explosão. O aparelho colidiu com uma elevação no terreno a 700 pés de altitude. Os cinco ocupantes faleceram no local e a aeronave ficou completamente destruída.
Estatísticas de acidentes demonstram que este cenário tem acontecido com uma frequência trágica. Pilotos operando oficialmente sob regras de voo visual (VFR) continuam a colidir com obstáculos no terreno por falta de visibilidade para manobrar ou porque a entrada em condições de voo por instrumentos (IMC) induziu à desorientação espacial e à perda de controle em voo. Existem várias razões que explicariam porque um piloto de helicóptero em voo VFR prossegue sob condições marginais, apesar de depender totalmente de referências no terreno para navegar e manter o controle da aeronave. Algumas destas razões são de ordem operacional, outras de ordem pessoal.
Primeiro, há que se considerar que helicópteros operam em condições bem diferentes dos aviões. Não cruzam no FL 350, nem a Mach 0.80. Helicópteros voam na maior parte do tempo a baixa altura, perto do terreno, decolando de áreas sem apoio de solo, sem informação meteorológica ou de tráfego aéreo. Pousam no topo de edifícios, em helipontos de hospitais, em plataformas de petróleo ou no meio de clareiras. Muitos voos ocorrem com apenas um piloto. Sua grande vantagem sobre os aviões está na possibilidade de atingir destinos aonde o avião não chega. Isto acaba gerando uma pressão para chegar a qualquer custo. Em outros casos, esperam-se respostas rápidas, como nas tarefas de transporte aeromédico. Um estudo sobre desempenho de tripulações concluiu que a possibilidade de erro humano é multiplicada muitas vezes quando existe pressão de tempo. Estas exigências frequentemente resultam em esforços para atingir resultados e acabam levando a operações sob condições marginais de meteorologia. O piloto nem sempre está preparado internamente para lidar com este contexto e veremos isso mais a frente.
Sob o foco operacional, o nível de TREINAMENTO é um dos fatores mais presentes nos acidentes envolvendo mau tempo. Certa vez, um helicóptero AS-332 decolou de Curitiba para o Rio de Janeiro com plano visual, embora a meteorologia fosse marginal para o voo VFR. Logo no início da rota, cruzando uma região montanhosa, as condições de teto e visibilidade se degradaram a tal ponto que a aeronave teve que reduzir demasiadamente a velocidade. Sem potência para voar tão lento fora do efeito solo, o aparelho iniciou um afundamento descontrolado até colidir violentamente com o terreno, sofrendo danos graves. Tanto a tripulação quanto o helicóptero estavam qualificados para o voo IFR, mas a opção tinha sido pelo plano visual. Este comportamento tem sido mais corriqueiro do que se imagina. A realidade é que, para muitos pilotos de helicóptero, o voo por instrumentos não é praticado a ponto de manter a proficiência e isso afeta a autoconfiança. Embora as empresas ou proprietários de aeronaves geralmente exijam uma qualificação IFR na hora da contratação, por causa dos perfis de voo em que o helicóptero é usado com mais frequência, decolando de lugares sem apoio e voando VMC, haverá menor possibilidade de o piloto manter o treinamento. Por isso, pode acontecer de o comandante optar por não fazer um plano IFR por absoluta falta de confiança na sua habilidade de controlar o helicóptero sem referências externas.
 A VAIDADE profissional é outro fator que induz à decisão de continuar o voo visual sob condições degradadas. Quando decola, o piloto supostamente teria verificado e estaria ciente das condições meteorológicas ao longo da rota e destino. O retorno poderia gerar críticas de falha no planejamento, do tipo “você não checou o tempo antes de decolar?”. As pressões externas, sejam dos passageiros ou outros envolvidos com a operação, também se somam àquelas pressões internas do próprio tripulante para completar o voo com o mínimo possível de alterações. É muito comum o piloto acreditar na sua capacidade de contornar a situação e de conseguir chegar ao destino. Um relatório de acidente, entretanto, já concluiu certa vez: “os pilotos, particularmente aqueles mais experientes, de maneira geral tentam terminar o voo da forma como foi planejado, agradando os passageiros, cumprindo horários e demonstrando sua capacidade profissional. Mas esta atitude pode trazer um efeito adverso para a segurança de voo, induzindo a constantes desvios de procedimento e reforçando avaliações incorretas, produzindo práticas perigosas que podem conduzir a uma tragédia”. Ou seja, o piloto passa a se acostumar com condições marginais, aceitando gradativamente situações cada vez mais críticas e, pior, sempre recebe um reforço positivo quando atinge o resultado esperado.
Acidentes por entrada inadvertida em IMC são normalmente catastróficos e letais
Os acidentes relacionados com restrição de visibilidade costumam ser catastróficos. Ao mesmo tempo, são os mais facilmente evitáveis, pois a decisão repousa nas mãos do tripulante. Quando defrontado com uma degradação das condições meteorológicas, o piloto tem várias opções: continuar voando com velocidade reduzida, retornar, fazer um pouso de precaução ou subir em IMC e modificar o seu plano de voo para IFR.
A opção de continuar o voo visual é escolhida pelo tripulante na maioria das vezes por se adequar aos objetivos que ele definiu quando a aeronave decolou. Entretanto, é a escolha que tem trazido as piores consequências operacionais, variando desde colisões com fios até impactos violentos contra o terreno resultando em perda total. Outra opção, a transição para o voo IMC, se não tiver sido previamente planejada, aumenta excessivamente a carga de trabalho, mas é uma alternativa viável à uma colisão contra o solo. Para que esta escolha seja exercida com segurança, é essencial manter a proficiência no voo por instrumentos, através de treinamento continuado. Já o pouso de precaução ou o retorno são ações facilmente executáveis.
Estas duas últimas alternativas preservam a iniciativa individual e o completo controle sobre a situação, embora possam gerar pequenos inconvenientes, como atrasos na chegada ao destino e eventuais críticas por parte dos colegas ou passageiros. Apesar disto, o piloto consciencioso deve se colocar acima destas recriminações. Preocupar-se com isto demonstraria apenas uma falta de confiança na sua capacidade de avaliar uma situação e tomar uma decisão. No ambiente dinâmico do voo, nenhuma decisão será perfeita, mas ninguém fora da cabine, na tranquilidade de uma sala, tem o direito de criticar ações tomadas em favor da segurança do voo. O piloto deve ter consciência que considerações posteriores ao pouso não podem ser mais importantes que a segurança da sua aeronave e dos passageiros.
Este aspecto tem sido frequentemente esquecido, mas, quando se verificam os diferentes efeitos entre um comportamento cauteloso ou um mais arrojado, fica fácil de escolher. Decisões em favor da segurança, que eventualmente provoquem consequências menores, como um atraso no voo, podem apenas gerar críticas por parte de pessoas menos preparadas profissionalmente. Mas seus comentários duram pouco e são logo esquecidos. Por outro lado, decisões que comprometem princípios de segurança, seja por influência de pressões externas ou de fatores internos do próprio piloto, podem gerar tragédias que serão lembradas e exploradas por toda uma carreira, isso se restar um carreira. O voo IMC inadvertido pode ser uma das condições mais demandantes, desorientadoras e perigosas que um piloto pode experimentar. A tentativa de voar visual em condições marginais é uma das situações que tem feito inúmeras vítimas na operação de helicópteros. Cabe tão somente ao piloto esta decisão crucial.


Referências
- Helicopter Safety Bulletin, Flight Safety Foundation
- IMC, Pilot Error cited in Rotorcraft Mishaps, Bill Wagstaff
- Relatórios Finais de Acidente, Cenipa

9 comentários:

  1. Excelentes observações David.
    Eu faria apenas uma correção...
    No meu ponto de vista, não existe IMC inadvertido. O que existe é IMC não planejado, IMC não intencional, ou qualquer coisa que o valha. Mas não inadvertido.
    Vejamos: Ao fazer o planejamento o piloto já é advertido que a meteorologia não está favorável ao voo visual. Ok, o tempo pode se deteriorar após o planejamento. Ao chegar ao pátio para a decolagem, ele observa o céu e vê que não está legal. Segundo aviso (advertência).
    Tudo bem, o tempo pode piorar com ele já em rota. Mas aí, o que o piloto faz quando a visibilidade cai? Diminui a velocidade (foi advertido novamente). E quando o teto cai? Passa a voar mais baixo.
    De repente, entra em IMC e diz que foi inadvertido....
    Sei que é a terminologia empregada por (quase) todos. Mas, não concordo.
    O quase é porque já vi documentos do NTSB onde classificam de UIMC (Unintended IMC, Unplaned IMC).

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    1. Concordo com voce, Nilton! Mantive o termo apenas por uma questão de compatibilidade com o que já se usa mundo afora. Mas você tem razão! Muito obrigado pelo feedback e um grande abraço!

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  2. Artigo bastante esclarecedor. Infelizmente muitos pilotos cedem às pressões externas quanto às decisões a se tomar acerca da operação em condições meteorológicas adversas. E não raro pagam caro por isso.

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  3. Existe também a certificação para single pilot de helicópteros que requerem em casos extremos como, IMC ou emergência de um segundo piloto para que o voo prossiga com segurança, muitos não utilizam devido ao custo de mais um salário, custo este que em muitos casos custarão suas vidas, para um helicóptero bi turbina IFR, manter a condição de voo e segurança em uma condição de emergência durante uma aproximação IFR e realiza-la com perfeição é para poucos exímios pilotos com grande experiência de voo e de vida, aos menos favorecidos resta rezar e tentar pousar no destino porque uma o não cumprimento da missão ao realizar um pouso de precaução poderá causar desemprego, ou desonra, ou destrato dos proprietários ou diretores da empresa.

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  4. Excelente artigo. Abordando de forma clara e de acordo com uma realidade existente.

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  5. Muito bom artigo, mas infelizmente aconteceu novamente.

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