4 de março de 2019

O ACIDENTE PODE COMEÇAR DENTRO DE VOCÊ

Um pequeno avião bimotor decolou de Florianópolis com plano IFR para Lages (SC) com dois pilotos e dois passageiros. O aeródromo de destino estava abaixo dos mínimos meteorológicos, com nevoeiro e visibilidade muito reduzida. A tripulação cancelou o plano IFR, iniciou a descida e tentou o pouso mesmo naquelas condições, mas colidiram com o solo. A aeronave pegou fogo e os quatro a bordo faleceram.
Muitos diriam que o acidente teria sido causado pelas condições meteorológicas adversas mas esta conclusão seria precipitada e superficial. Se analisarmos com foco na prevenção, veremos que o mau tempo não pegou o piloto de surpresa nem jogou a aeronave contra o solo. Na verdade, coube ao piloto a decisão de continuar o voo e tentar o pouso abaixo dos mínimos. Como não houve sobreviventes, ninguém nunca vai saber exatamente o porquê da sua decisão. Mas os testemunhos colhidos na investigação dão conta que os passageiros deste aviao iriam de Florianópolis para o aeroporto de Guarulhos, mas precisavam antes pousar em Lages para apanhar seus passaportes, pois embarcariam em um voo internacional logo em seguida. Será que a necessidade dos passageiros afetou de alguma forma a capacidade de julgamento do piloto a ponto de ele tentar o pouso em condições de alto risco? É provável que sim. Será que ele percebeu a influência disto? É provável que não.
Outro caso: um helicóptero decolou do Campo de Marte com destino à Salto (SP). Próximo ao local de pouso, o piloto efetuou um voo rasante sobre uma rodovia, colidindo o rotor principal com um barranco na beira da estrada. Três dos sete ocupantes faleceram e a aeronave ficou irrecuperável. “Um caso típico de indisciplina”, diriam alguns. Sim, sem dúvida. Entretanto, sob a ótica da prevenção de acidentes, este rótulo em nada ajuda a melhorar a segurança das operações. Que tal buscar a origem do acidente nos motivos que levaram o comandante a decidir fazer um voo a baixa altura desnecessariamente. O ponto chave para toda PREVENÇÃO de acidentes não é descobrir o QUÊ aconteceu, mas sim identificar o POR QUÊ.

Nos últimos dez anos, o Julgamento de Pilotagem e o Processo Decisório na cabine somados foram fatores contribuintes em mais de 50% dos acidentes aéreos no Brasil. Fonte: CENIPA, 2018

Uma análise dos acidentes aeronáuticos ocorridos no Brasil nos últimos dez anos revela que grande parte dos eventos não teve nenhuma relação com sistemas mecânicos da aeronave ou com a meteorologia, mas sim com decisões incorretas tomadas pelos pilotos durante o voo. Na  sua maioria, a aeronave estava em condições normais de operação e não havia nenhum fator externo determinante para o acidente. Aqueles dois exemplos são casos clássicos onde o acidente começou dentro da cabeça do piloto, consequência das decisões que ele tomou.
Para escapar das armadilhas tradicionais que vitimam dezenas de tripulantes e passageiros, ano após ano na aviação, um dos passos é se educar sobre situações que podem influenciar a sua capacidade de julgamento e de tomada de decisão.

FATORES INTERNOS
O comportamento de um piloto - na verdade o comportamento de qualquer ser humano - pode ser motivado por fatores externos e internos. Entre os fatores internos observados com maior frequência nas investigações de acidentes aéreos estão: a ansiedade, a pressa, o excesso de autoconfiança, a vaidade, o exibicionismo e o sentimento de invulnerabilidade.
Já percebeu a frequência de tragédias durante festividades relacionadas com a aviação envolvendo pilotos não qualificados para exibições? Aniversários de aeroclubes, semana da asa e feiras aéreas são eventos que contribuem para engordar as estatísticas de acidentes. O exibicionismo, uma característica que se exacerba durante estas festividades, altera a capacidade de julgamento de um piloto e o coloca em situação onde ele acaba excedendo seus limites se não estiver preparado. Mas isto não acontece apenas em festividades. Quantos e quantos já morreram na frente de pais, esposas, namoradas, filhos e amigos, realizando manobras que em muito excediam a sua capacidade pessoal ou a da aeronave que pilotavam? Será que eles acreditavam que teriam um comportamento absolutamente normal mesmo quando voando nestas circunstâncias? Um piloto que se ache imune, provavelmente não está conseguindo identificar como estas situações lhe influenciam e isto aumenta a chance de se tornar mais um número na estatística de acidentes. Por outro lado, ao conseguir perceber os fatores que influenciam seu julgamento, estará caminhando no sentido de conhecer melhor as suas limitações individuais, comuns a qualquer ser humano.
Excesso de autoconfiança é outro fator presente em decisões incorretas tomadas no ambiente de aviação. Quanto mais você conhece uma operação, quanto mais repeti-la, mais confiante estará quanto ao seu sucesso. Mas isto também vale quando você estende os limites ou se desvia das regras. Um resultado positivo reforça na sua mente a suposta correção daquela decisão. E você repete o comportamento mais e mais vezes, cada vez mais confiante de que continuará dando certo, embora esteja, na verdade, aumentando sua exposição ao risco. Até um dia em que algum pequeno fator fora do seu controle vai pegá-lo desprevenido. E ouviremos aquela famosa frase: "mas eu sempre fiz assim". Foi a sua autoconfiança excessiva que gerou complacência - um rebaixamento do seu nível de alerta - e te deixou mais vulnerável.
 De novo, o primeiro passo para tomar melhores decisões é reconhecer as situações que alteram a sua capacidade de julgamento.
 Para qualquer um daqueles fatores internos, como a pressa, a ansiedade, o excesso de autoconfiança ou a vaidade, é importante reconhecer que existe uma condição alterando o seu desempenho pessoal e a sua capacidade de avaliação. Quantos pilotos, por exemplo, pressionam a continuação de um voo sob mau tempo com o pretexto de “preciso chegar hoje..., o passageiro tem uma reunião importante..., este doente tem que estar no hospital logo..., se eu não chegar à cidade o patrão vai ficar chateado”. As estatísticas estão repletas de aviões que nunca chegaram. A decisão final é do piloto, do comandante da aeronave. Ficamos tão preocupados em chegar, que aceitamos esticar os limites além dos regulamentos e das nossas capacidades. Às vezes, supomos uma pressão externa que talvez nem exista. Da próxima vez que se sentir pressionado, experimente explicar as condições ao seu passageiro, se for o caso, e descubra se é tão importante assim para ele chegar na hora marcada considerando as condições. Provavelmente, ele vai optar pela decisão mais segura. Experimente perguntar a si mesmo se não é a sua vaidade profissional que te impede de curvar 180 graus e voltar para o aeroporto de origem. Quanto mais cedo, no planejamento ou durante o voo, você conseguir perceber isto, mais perto estará de tomar uma decisão melhor. Por outro lado, quanto mais próximo do seu destino, quanto mais retardar sua decisão, mais pressionado se sentirá para continuar no caminho arriscado.


Um helicóptero executivo decolou da cidade de São Paulo para uma praia em Maresias, tentou uma aproximação noturna  sob condições meteorológicas adversas e terminou colidindo com o mar a 3 km da costa. A aeronave submergiu e dois dos ocupantes faleceram.




          Um aspecto muito importante do comportameno humano em aviação é o controle da vaidade. Todos nós cometemos erros.  Mas o orgulho profissional conjugado com a tentativa de não deixar o erro aparecer pode ser trágico. Existem inúmeros casos de pilotos que cometeram um erro no planejamento do voo e se viram, por exemplo, com pouco combustível para chegar ao destino com segurança. Mas a eventual decisão de pousar em um campo alternativo mais próximo suscitaria perguntas embaraçosas de serem respondidas. Então, mesmo sabendo do risco, ele prossegue para o destino original. Algumas vezes isso não dá certo e temos aviões pousando forçado a poucas milhas do destino, sofrendo danos graves, provocando sérias lesões nos ocupantes, tudo porque o piloto tentava apenas esconder o seu erro. Vaidade.  

        Outra armadilha sutil vem do fato do homem usar sua capacidade lógica e de argumentação para se justificar e fazer as coisas que ele deseja, ao invés de optar pelo que é sabidamente o melhor a ser feito. A maioria de nós, quando confrontado com um conflito entre o que sabemos que é o correto e aquilo que gostaríamos de fazer, tende a procurar uma forma de satisfazer os desejos, enquanto se convence de que é a coisa certa a fazer. E isto vale para a nossa vida em geral, não só para a aviação. Você já deve ter passado por uma situação parecida. Aceitou fazer um voo planejando retornar no mesmo dia, pois já tinha compromissos assumidos para o dia seguinte, quaisquer que fossem. Mas, ao tentar voltar, se depara com uma previsão de tempo ruim pela frente. Inicialmente, você pensa: “Eu queria voltar para participar do torneio de tênis neste fim de semana, mas a meteorologia agora está ruim e com formação de gelo na rota, além do que já está escurecendo”. Até aqui, você está listando fatos e está tudo sob controle. O problema é quando você continua com o seguinte raciocínio: “Mas qual o problema? Estou mesmo precisando fazer algumas horas de voo por instrumentos e, se eu for no nível certo, não devo ter problema com gelo. Além do mais, eu nem trouxe roupa para o pernoite”. Isto se chama RACIONALIZAÇÃO. Você gostaria de voltar para casa, sabe que o tempo está ruim, que está cansado e que o melhor seria ficar. Mas... você precisa treinar o voo IFR. Vem bem a calhar. Afinal, você nem está tão cansado assim. Então, "preparem as raquetes porque estou a caminho".
         Normalmente, este processo de racionalização acontece sem que o piloto se aperceba. Ele simplesmente tem certeza que analisou todos os pontos e tomou a melhor decisão. Se um dia você se pegar procurando muitos argumentos para justificar uma decisão, não quer dizer que esteja necessariamente à beira de um acidente, mas talvez esteja querendo justificar uma vontade pessoal e tomar uma decisão que não seria a mais indicada para aquele contexto. O grande problema é que, à medida que o tempo passa, você vai ter mais dificuldade para identificar estas decisões inadequadas, pois elas terão se tornado comuns, e você começará e estender os seus próprios limites. Aí, sua capacidade de avaliar e decidir já estará distorcida e você estará mais vulnerável a decisões inadequadas.
          É importante que todos nós tripulantes estejamos atentos. Quando a natureza básica do homem, seus impulsos e desejos o levarem a uma direção, e seu conhecimento e sua razão o inclinarem para outra, muitas vezes ele vai optar por aquela que atende seus impulsos, a não ser que ele consiga perceber isto e responda adequadamente. Isto se chama MATURIDADE. Nos dois acidentes comentados no início, os pilotos não perceberam e se tornaram vítimas, respectivamente, da pressão autoimposta e do exibicionismo.
            A primeira e mais importante barreira para falhas de decisão é a DISCIPLINA no exercício da atividade. Disciplina pode ser entendida apenas como cumprimento das normas e regulamentos. Mas também pode ser vista como sua força de vontade para tomar decisões sensatas quando existirem tentações e pressões para fazer o contrário. A disciplina é algo a ser exercitado em todo voo. Não adianta andar à margem dos regulamentos e do bom senso e pensar que nas situações críticas você será tomado por um arroubo de disciplina e vai tomar a melhor decisão do mundo. Não vai, pois você condicionou o seu cérebro a pensar de uma certa forma e ele vai continuar seguindo aquele padrão inseguro. Você mesmo se treinou assim.

Disciplina é fazer o que precisa ser feito, mesmo que voce não tenha vontade de fazê-lo

 A aviação é uma atividade muito segura mas que, por vezes, torna-se perigosa pelas posturas do próprio piloto. Tente controlar seus desejos e esteja atento às armadilhas que a natureza humana põe à sua frente. Seja um piloto melhor do que aqueles que não conseguiram perceber estes fatores e tomaram decisões tragicamente erradas. Na próxima vez que entrar na sua aeronave, lembre-se: as condições para um acidente podem começar dentro da sua própria mente. Ter esta percepção pode salvar a sua vida.

Referência:
Relatório Final de Acidente PT-OQH, 28MAI1995



21 comentários:

  1. David, bom dia.
    Parabéns pelo conteúdo explanado. Muito bom texto. A segurança de voo, em essência, começa no coração e toma forma e se agiganta no cérebro... Ela pertence ao racional, e neste seu texto vc mostra isso com muita propriedade.
    Espero que continue a nos brindar com muito mais reflexões sobre este tema e que possa melhorar a quantidade dos que voam e sobreviveram, pois em um momento de sua vida deixaram que o racional tomasse conta de suas decisões.
    Abcs
    Cmt Louzada – Prova 16

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  2. A doutrina de segurança deve ser perseguida à exaustão, até que faça parte da massa do sangue.

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  3. Parabéns pelo artigo, que em todas as fases da vida de um piloto ele é pertinente, pois quanto mais novo, em horas de vôo, mais forte é a vontade de se exibir, e quanto mais velho, mais é a autoconfiança. Assim, prudência e disciplina sempre.

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  4. Excelente o artigo. Sem sombra de dúvida, uma importante ferramentas de prevenção. Guerra acusada só morre quem quer! Parabéns, David.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Excelente texto , quando o ego toma conta e a pessoa deixa de aprender é aí que ela cai , humildade sempre e buscando o conhecimento a cada dia , abcs !

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  7. Muito bom o texto, nos faz pensar em como criamos e mantemos a cultura de segurança no dia-dia das operações.
    O acidente da Lages pra mim é especial, pois eu conhecia os pilotos e o avião, um turbo-commander. Eu cheguei a voa-lo meses antes do acidente. O cmte do voo foi meu instrutor de voo IFR no aeroclube, era um excelente profissional e uma ótima pessoa. Na época, ninguém entendeu como ele se colocou naquela situação, pois era muito profissional e padronizado. Perdi um grande amigo...

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    1. Quando há algum envolvimento com o evento, fica mais dificil aceitar. O melhor que podemos fazer é tirar ensinamentos para não cairmos na mesma armadilha. Obrigado pelo comentário, Roberto.

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  8. P A R A B É N S ... PELAS EXCELENTES COLOCAÇÕES, ....

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  9. Artigo exposto de forma didática, objetiva sem perder a profundidade que o tema requer. Essencial para quem voa, na minha modesta opinião, por hobby, esporadicamente tendendo a perder a padronização com o tempo. Obrigado por dividir.

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