21 de março de 2018

COMPLACÊNCIA NAS OPERAÇÕES DE VOO



Maio de 2014. Um jato executivo Gulfstream G-IV ingressa na pista para decolagem do aeroporto de Bedford, EUA. Durante a corrida, ao atingir 125 kt (230 km/h), o piloto tenta puxar o manche para decolar mas os controles de voo não se movem. Já em alta velocidade, o comandante decide iniciar a frenagem, só que agora não há mais espaço suficiente. O avião ultrapassa o final da pista, colide com obstáculos no prolongamento, pega fogo e fica totalmente destruído. A bordo, os dois pilotos, a comissária de voo e mais quatro passageiros sofrem lesões fatais.





O NTSB, órgão americano de investigação de acidentes, conclui que a aeronave havia iniciado a corrida de decolagem com a trava dos comandos de voo acionada. Conhecida como Gust Lock, o dispositivo é usado para bloquear os comandos quando o avião está no solo e evitar que as superfícies de controle sejam danificadas devido à ação de ventos fortes.

A primeira vista, parece que os tripulantes esqueceram um dos procedimentos previstos antes da decolagem, a liberação das travas de comandos de voo. Mas uma pesquisa mais profunda indicou outros fatores presentes. Até o momento da decolagem, o gravador de voz de cabine (CVR) não registrou a leitura de nenhum dos cinco checklists previstos (Before Starting Engines, Starting Engines, After Starting Engines, Before Takeoff e Lineup checklists). Dentre estes cinco checklists, dois deles previam ações de liberação da travas dos comandos e a verificação de que os comandos estavam livres antes da decolagem.

O esquecimento de uma ação é algo que pode acontecer quando se executa uma tarefa de memória e, por isso mesmo, as boas práticas aconselham e os regulamentos de aviação determinam o uso de uma lista de verificações como auxílio durante as operações da aeronave. Para maior eficiência, os itens de checklist devem ser comunicados verbalmente em voz alta por um dos tripulantes e respondido pelo outro. Embora seja possível que um dos tripulantes possa ter realizado os procedimentos de forma silenciosa, tudo indica que os checklists não foram executados na preparação para esse voo. Adicionalmente, a entrevista com outro piloto que havia voado com o comandante da aeronave acidentada revelou que ele fazia os procedimentos de memória e não pedia o uso do checklist.

Porém, revelador mesmo foi o fato constatado na leitura do gravador de voo, o Quick Access Recorder (QAR). Análise das 175 decolagens gravadas no período dos últimos nove meses, incluindo a do dia do acidente, indicou que aqueles dois pilotos deixaram de executar um cheque completo dos comandos de voo em 98% das decolagens.

Agora tente imaginar uma situação hipotética. Digamos que um terceiro piloto, você mesmo, viajando no “jump seat” com esta tripulação, indagasse no momento do taxi sobre os cheques de comando de voo que não foram realizados. Que tipo de resposta poderia obter de uma tripulação que em 98% dos casos negligenciou este procedimento e nada de errado aconteceu? Por que você acha que eles estavam agindo assim?

Depois da tragédia consumada, tudo fica mais evidente e as perguntas se avolumam. Por que os tripulantes estavam operando em desrespeito aos procedimentos? Sim, eles haviam passado por voos de cheque, portanto sabiam o que era o certo, mas decidiram não fazer. Estavam se desviando dos procedimentos intencionalmente ou a larga experiência no tipo de equipamento foi contribuinte para isso parecer para eles como um risco menor? Será que o fato de os dois voarem juntos há muito tempo foi fator para criar uma atmosfera de satisfação e de leniência com a situação? Será que a familiaridade com o equipamento e com o tipo de voo afetou suas posturas profissionais com o passar do tempo?

Estas perguntas levam o assunto na direção de um comportamento conhecido como Complacência nas operações de voo. Complacência é uma atitude pessoal de relaxamento e de rebaixamento dos padrões na execução de uma tarefa ou na tomada de uma decisão. Ela ataca principalmente aqueles que se julgam experientes e profundamente familiarizados com seu tipo de atividade, pois estas condições geram uma diminuição do nível de alerta e do cuidado com os detalhes. A complacência é uma postura de condescendência e de tolerância com comportamentos e situações que estejam abaixo do ideal. Geralmente é acompanhada pela baixa percepção do perigo que esta postura representa, o que por si só já é um grande perigo. Pilotos se tornam complacentes quando perdem aquele saudável senso de respeito pelas suas operações, quando acham que não precisam mais se preparar tanto para um voo, quando acham que checklist é para os novinhos, quando tomam decisões que diminuem as margens de segurança.

Estando envolvido com investigação de acidentes há cerca de trinta anos, acredito firmemente que a complacência seja um dos fatores operacionais mais freqüentes em acidentes aéreos, embora seja difícil quantificá-la durante uma investigação. Os sistemas de uma aeronave moderna são altamente confiáveis e apresentam baixíssimas taxas de falha. Em consequência, os pilotos operam com um nível relativamente baixo de preocupação quanto aos sistemas, o que aumenta sua sensação de conforto e diminui o nível de alerta. Com o equipamento contribuindo cada vez menos, a grande maioria dos acidentes está relacionada com falhas humanas e desvios operacionais, a maioria destes desvios se originando da complacência em relação ao cumprimento dos padrões.

É claro que todo ser humano está sujeito a experimentar a complacência. Ela invade áreas que no passado foram ocupadas pelo nosso mais forte interesse, pelo foco e pela nossa atenção mas que, com o passar do tempo, caíram de prioridade e acabaram se transformando em rotina e tédio. A complacência em si não é uma anomalia, uma vez que é resultado natural da rotina, da repetitividade de tarefas e da falta de novos estímulos. O grande desafio é identificá-la e adotar ações para combatê-la. É muito fácil perceber complacência no comportamento dos outros, mas muito difícil percebê-las em nós mesmos. A gente sempre tem uma desculpa.

Existem vários sintomas de que a complacência se instalou e para os quais devemos estar atentos, todos interrelacionados. O mais claro é a aceitação de baixos padrões de desempenho, ou seja, deixar de executar suas ações com o mesmo nível de cuidado e de atenção aos detalhes que se fazia no passado. Outro sintoma é a diminuição da vontade de se manter proficiente na atividade, ou seja, o profissional não se esforça mais para se manter atualizado e com a competência necessária. A pessoa vai apresentar uma postura de satisfação com as coisas do jeito que estão, o que gera uma falsa sensação de bem estar e afeta o seu julgamento na avaliação dos riscos. Com o passar do tempo, acaba desenvolvendo uma atitude de excesso de autoconfiança nas suas habilidades e que termina naquele famoso sentimento de invulnerabilidade, quando acha que acidentes só acontecem com outros e nunca com ele. São estes os pilotos com maior chance de assumir riscos desmedidos e de se envolverem em acidentes.

Embora qualquer piloto esteja vulnerável a ser uma vítima da complacência, aqueles que trabalham em empresas menores, longe do alcance dos setores de treinamento e padronização de uma grande linha aérea, talvez estejam mais suscetíveis. Em um grupo pequeno, todos os pilotos se conhecem e sentem-se confortáveis uns com os outros e aprendem a fazer as coisas sem criar atritos. Na medida em que se sentem mais confortáveis, as tarefas mais chatas deixam de ser feitas e, quanto mais atalhos são tomados sem causar incidentes, mais ficam tentados a repeti-los. Tudo isto vai surgindo sem que a pessoa perceba.

Pilotos deixam de seguir os procedimentos padrão por se julgarem conhecedores profundos do avião ou do tipo de voo. Outras vezes, tomam decisões que diminuem as margens de segurança que existem nas normas e regulamentos de aviação por se sentirem confortáveis com uma condição após repeti-la por várias vezes. Até o dia em que algo acontece, até o dia em que ele comete um erro (sim, você comete erros), mas agora as margens de segurança e os procedimentos não estão mais lá para protegê-lo.


COMBATENDO A COMPLACÊNCIA

Existem várias maneiras de combater a complacência nas operações de voo. A primeira e mais importante consiste em aceitar que esteja acontecendo com você.  Admita a possibilidade, você é um piloto experiente, faz esse trabalho há anos e repetidas vezes, conhece tudo de trás para frente.  Você acredita mesmo que seu nível de alerta e de atenção aos detalhes hoje é o mesmo de quando começou na atividade? Ou você agora está mais relaxado, às vezes relaxado demais? Será que você ainda conhece os procedimentos com o mesmo nível de proficiência que os pilotos que acabaram de sair do treinamento? Se entendermos que é possível de acontecer, então vejamos que ferramentas podemos usar para combater a complacência:
  • Estudo: procure estar atualizado com a sua aeronave e com a sua operação, o que nem sempre é fácil pois a aviação está em evolução constante; por isso mesmo, estar atualizado exige algum esforço da sua parte e envolve reler os manuais de sistemas, os procedimentos normais e de emergências, boletins operacionais e os regulamentos de tráfego aéreo, entre outros; uma outra ação bastante recomendável é a leitura de relatórios de acidentes com aeronaves iguais à sua ou aeronaves diferentes mas com o mesmo tipo de operação; as fontes de informação são inesgotáveis e o aprendizado é muito grande; aprenda com o erro dos outros.
  • Disciplina: com aquele conhecimento na cabeça, é preciso haver uma decisão consciente de empregá-lo todo o tempo, não somente quando for conveniente; voe e opere a sua aeronave conforme os padrões recomendados; a complacência corrói a disciplina e a falta de disciplina alimenta a complacência; é um circulo vicioso, traiçoeiro, que você precisa perceber e cortar antes que o pior aconteça;
  • Companheirismo: quando você voa como parte de uma tripulação, a melhor ferramenta contra a complacência é ter ao seu lado um colega que esteja monitorando a operação e que esteja disposto a falar; nenhum ser humano é perfeito e nenhum piloto opera com perfeição todo o tempo; erros operacionais acontecem a toda hora e ter alguém disposto a falar vai aumentar sua percepção sobre seus erros; lembre-se, é muito mais fácil identificar a complacência nos outros do que em si mesmo, portanto não é má idéia confiar na avaliação do seu parceiro; e, quando receber uma crítica, sua reação deve ser compatível, ou seja, você não deve desmerecer o comentário do colega que está disposto a te ajudar;
Complacência é um fator significativo em acidentes aéreos e surge sorrateiramente, rebaixando os padrões até o momento em que os riscos nem mais são percebidos com clareza, como vimos no acidente com o Gulfstream. Assim, é importante reconhecer as condições que facilitam seu aparecimento, identificar os seus sintomas e ter disposição para combatê-los. As ferramentas estão aí e são muito mais fáceis de serem adotadas do que se ver envolvido nas consequências de um acidente. Com todas estas informações, esperamos ter cada vez menos casos como daquele piloto que, perguntado se sabia a diferença entre ignorância e complacência, respondeu: “eu não sei e não me importo...”.



Referências:
- Complacency in Risk Management, Don Andrews
- Edge of Envelope Flying, Russel Williams
- Countering Complacency, James Albright
- Complacency in the Flight Department, Mario Pierobon
- The Curse of Complacency, Terry Tolleson
- Complacency, Eddie Haskel

24 comentários:

  1. Muito bom David !! Gostaria de poder usar seus textos com meus alunos de Ciências Aeronáuticas em sala de Aula. Eles são excelentes e tão práticos e objetivos. Como faço para conseguir seus textos ? Beijos Conceição ( Concita)

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    1. Muito obrigado, Conceição. Enviarei os textos para voce.

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    2. David, texto irretocável. Gostaria também de utilizar esse texto na sala de aula. Parabéns

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    3. Claro, está a disposição. Muoto obrigado pelo seu comentário.

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    4. Este comentário foi removido pelo autor.

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    5. Esta disposição à disciplina gera hábitos, hábitos geram caráter, se faz necessário reconhecer a necessidade desta atenção à disciplina não apenas aos profissionais aeronáuticos, mas a qualquer profissional. É necessária a qualquer cidadão, e em qualquer atividade humana, inclusive as domésticas.

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  2. Muito bom! Obrigado pelo ensinamento.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. checklists foi criado para prevenir as falhas humanas

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  5. Achei este texto muito bem escrito, e acessível mesmo para mim que não sou da área. E penso que cometemos e somos complacentes em boa parte das nossas tarefas de rotina , onde não há risco de vida,mas a qualidade fica comprometida! Genial!Parabéns pelo texto!

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  6. Parabéns Pelo artigo David!
    Como sempre, contribuindo de forma inestimável para a segurança operacional e preservação de vidas!!
    Abraços

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  7. Excelente texto. Repassarei para o efetivo da minha Unidade. Att, Cap Pimenta GTA-PB

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