27 de maio de 2017

O QUE O ACIDENTE COM O AF447 PODE NOS ENSINAR SOBRE O USO DO RADAR METEOROLÓGICO DE BORDO


     Existe na internet uma análise meteorológica das condições que cercaram o acidente com o A330 voo AF447 (1). Muito desta análise está baseada em imagens de satélites meteorológicos, com a conclusão de que havia um sistema convectivo bastante ativo (uma tempestade) na rota do AF447. E a gente se pergunta: por que a tripulação entrou nesta tempestade?
      Nós sabemos que durante o voo os pilotos não tem acesso à essas imagens satélite. O que eles tem para se desviar das formações é o radar meteorológico de bordo. Lá naquela análise, bem no final do texto, sob o tópico "old imagery", existe link para uma figura que o artigo nem aborda mais, que mostra uma provável apresentação do radar de bordo do AF447 e que julgo importante comentarmos como aprendizado para nós, aviadores.
     É sabido que os radares meteorológicos dos aviões são projetados para refletir água em estado liquido e tem baixa refletividade para outras partículas ou para água em estado sólido (como cristais de gelo).
    Normalmente, não temos água em estado liquido no FL350. Se a tripulação atravessar um sistema convectivo e mantiver a antena do radar (TILT) nivelada com o horizonte, vai ter pouco ou nenhum retorno (verde ou preto na tela). Mas este retorno fraco do radar em altitude não significa que a meteorologia não ofereça perigo. Na verdade, os efeitos danosos de uma tempestade (como turbulência, granizo e cristais de gelo) podem atingir altitudes muito elevadas por causa das fortes correntes verticais e afetar significativamente o voo em níveis altos. Como não há água liquida nestas altitudes, o radar vai mostrar retornos fracos, o que pode induzir a tripulação a adentrar uma 'área verde' em altitude achando que não existe perigo.
    Por isso, a técnica recomenda que, em voo de cruzeiro em grandes altitudes, apontemos a antena do radar para baixo, mirando a faixa de altitude onde pode haver água em estado liquido, tipicamente ali em torno do 20.000ft, um pouco mais, um pouco menos. Com este procedimento, a tripulação vai ter uma noção do que acontece lá em baixo, no núcleo da tempestade, e pode presumir os efeitos que vai encontrar no seu nível de voo.
    Para ilustrar o conceito, na figura abaixo o avião está voando a 10.000ft e apontando a antena para cima procurando o núcleo mais refletivo da tempestade. Por outro lado, se voando em grandes altitudes, a antena deve procurar o mesmo núcleo, só que obviamente apontando para baixo. Se o avião estiver lá no FL350 com a antena apontando para o mesmo nível de voo, provavelmente não vai ter retorno no radar, apesar de adentrar a formação convectiva e sofrer suas consequências.
Deve-se utilizar o recurso de variação do TILT da antena radar para fazer uma varredura vertical e encontrar a parte da formação com maior refletividade, esteja ela acima ou abaixo do nível de voo da aeronave.


    Se imaginarmos (hipoteticamente) que a tripulação do AF 447 manteve o radar nivelado com o horizonte, eles provavelmente não viram nenhum retorno muito perigoso a sua frente, como mostra a tal figura da provável apresentação radar naquele nível de voo da referida análise meteorológica (veja na figura abaixo). Isto explicaria a decisão de não desviar. Mas o ponto aqui é que qualquer retorno em grande altitude deve ser motivo de grande preocupação e deve levar o tripulante a varrer a área abaixo para identificar o que está acontecendo e o que estaria provocando aqueles retornos no FL 350. Assim, os desvios devem ser programados com base nas informações que ele recebe lá de baixo também, da área mais ativa da tempestade.


Extrapolação da provável visualização no radar de bordo, baseado nas informações de satélite.

     Outras aeronaves também passaram na mesma região quase na mesma hora.  No voo Air France 459, o comandante tirou o radar do modo de ganho calibrado (CAL) e passou para o modo de ganho máximo (MAX), tudo com TILT da antena entre -1º e +1,5º graus. Os ecos apareciam em amarelo e vermelho quando no ganho máximo, mas apenas verde e amarelo em ganho calibrado. Já a tripulação do voo Lufthansa 507 observou retornos verde na sua tela do radar - provavelmente apontado para o mesmo nível de voo - e houve a decisão de desviar, mesmo sendo verde. Estes dois exemplos reforçam o fato de que o modo como o radar é operado vai apresentar visualizações muito diferentes para a tripulação e afetar sua tomada de decisão.      

     No caso do AF447, não há comentário da tripulação sobre ajuste significativo do TILT do radar. Os pilotos avisaram às comissárias que haveria um pouco de turbulência a frente, o que nos leva a imaginar que não estavam tendo ecos tão significativos do seu radar, o que leva a supor que estavam com o radar apontado para o nível de voo. Suposições... Mas, independente do que aconteceu neste evento, e a título de aprendizado, é importante ressaltar que o uso do radar meteorológico de bordo exige um pouco mais de conhecimento e de interpretação. Não basta ligar e olhar a tela.
     Como analogia, imaginemos estar em um terreno desconhecido, na escuridão completa e com apenas uma lanterna de mão. Para caminhar neste terreno, precisamos varrer lateral e verticalmente a área a nossa frente com a lanterna em busca do perigos, que podem ser tanto um buraco no solo como um galho de árvore na altura da cabeça. Então não adianta manter a lanterna apontada pra frente ou pra cima, pois você não verá o buraco que está no chão e vai se acidentar. É basicamente assim que acontece no voo em altitudes elevadas.

Se o caminho é desconhecido, é essencial fazer varreduras laterais e verticais constantemente, para identificar os perigos e manter a segurança.
      
     As imagens abaixo, feitas com o radar de um Embraer E175, ilustram o conceito descrito neste artigo. Na parte de cima da imagem, temos a foto de uma formação cumuliforme bem na rota e no mesmo nível de voo (FL380) como estava sendo vista pela tripulação. Na parte inferior esquerda da imagem, a tela do radar com com ângulo 0.0° não mostra nada a frente, o que é esperado, pois a refletividade em grande altitude é muito baixa. Na imagem embaixo a direita, a antena com ângulo de -5.0° consegue mostrar o núcleo da tempestade. É com este ajuste para baixo que o piloto deve se basear para efetuar os desvios. Se o piloto, em altitude elevada, mantiver o radar em ângulo zero, estando em IMC ou a noite, vai adentrar desavisadamente a formação de cumulus no seu nível e sofrer todas as suas consequências atmosféricas.

No canto inferior esquerdo do PFD pode se ler o TILT do radar, sendo 0.0º na imagem da esquerda e negativos 5.0º na imagem a direita.

          Em resumo, o que se quer enfatizar aqui é a necessidade de sabermos para onde apontar a antena do radar, dependendo da altitude do voo, e também saber interpretar a imagem na tela. Manter a antena apontada para o mesmo nível de voo tem sido observado com frequência, mas esta técnica não nos protege dos perigos da meteorologia. Se não soubermos para onde apontar a antena, seja voando alto ou voando baixo, simplesmente não veremos o cenário de risco e consequentemente não teremos como tomar decisões corretas para garantir a segurança do voo. Sobre a interpretação da imagem, há que se considerar o formato e a cor, mas nem sempre o que é verde na tela é ausência de perigo, nem sempre o que é vermelho significa algum risco (se alguém perguntar, podemos esclarecer isso também).
          Para quem opera aeronaves com radares Multi-Scan, há que se observar as características específicas de cada modelo. Este tipo de radar tem uma inteligência incorporada que rastreia o céu verticalmente também, além de fazer outras análises.
          Sobre a controversa reação da tripulação ao congelamento dos tubos de pitot, que acabou levando o avião a estolar e perder o controle, lembro da surpresa de meu pai, aviador experiente e atualmente aposentado, ao conversarmos sobre os eventos que resultaram no acidente com o AF447. Ele me esclareceu: "quando comecei a voar o Douglas DC-3 na década de 1960, meu instrutor me perguntou se eu sabia voar em mau tempo e eu disse que não. Ele então ensinou que eu deveria ajustar a potência do motor para um valor x, ligar o aquecimento do pitot, manter a ATITUDE da aeronave pelo horizonte artificial e não dar tanta atenção às informações de altitude, velocidade e VSI, pois tudo iria variar bastante. De fato, algumas vezes no voo o tubo de pitot congelava mesmo, a velocidade zerava, mas depois de um tempo voltava a indicar sem maiores problemas". Depois deste diálogo, me pareceu mais uma vez que a tecnologia está nos privando de algumas habilidades básicas que, se ainda fizessem parte da nossa cultura como aviadores, poderiam ter permitido àquele A330 chegar ao seu destino.


(1) - (http://www.weathergraphics.com/tim/af447/) .

12 comentários:

  1. Olá comandante, primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo blog. Muito interessante e bem escrito. Espero pelos próximos posts. No texto você fala sobre o radar meteorológico: Sobre a interpretação da imagem, há que se considerar o formato e a cor, mas nem sempre o que é verde na tela é ausência de perigo, nem sempre o que é vermelho significa algum risco (se alguém perguntar, podemos esclarecer isso também). Poderia esclarecer? Grato bons voos.

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    1. Ola, inicialmente obrigado pelo seu elogio e por perguntar sobre a interpretacão da imagem. Vou escrever a respeito sim, mas se voce quiser enviar seu email de contato, posso lhe adiantar algumas informações. Obrigado.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. Caro Patrick, seguiu a resposta no seu e-mail.

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    4. Poxa, também quero!

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  2. Excelente artigo e muito útil. Contribui para a segurança de voo. Parabéns Comte e obrigado. Agradeça seu pai pela dica. Sábias palavras.

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  3. Esse conteúdo em língua portuguesa é raro, e com essa qualidade e aplicação prática, em qualquer idioma. Muito bom, lendo todos!

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  4. Parabéns David, seus posts são sempre muito elucidativos.

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  5. Excelente artigo Comandante
    Como comentado anteriormente artigos sobre esse assunto em língua portuguesa são escassos.

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  6. Achei interessante, o seguinte: a informação que nos chegou foi a de que o Comandante da aeronave sabia da condição meteorológica adversa e optou por não desviar. Por que? Me parece também que outros aviões na mesma rota o fizeram.....

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  7. Mais 1 comentário: acidentes desse porte e dessa natureza só acontecem com "a soma de fatores" - a condição meteorológica adversa não foi o único fator responsável pela queda da aeronave - teve a questão do piloto estar fora da cabine (descanso) no momento mais crítico................

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