25 de janeiro de 2021

ACIDENTES FATAIS COM BIMOTORES LEVES - O ERRO CLÁSSICO


No dia 24 de janeiro de 2021, foi noticiado um acidente com aeronave Beechcraft Baron B55 nas proximidades da pista particular da Associação Tocantinense de Aviação (SWEJ), no estado do Tocantins. A aeronave teria se acidentado após a decolagem, causando ferimentos fatais a todos os ocupantes.

Como sempre, acidentes com bimotores leves são cercados de especulações sobre o desempenho desta classe de aeronave quando um motor está inoperante. Muitas opiniões sem fundamento passaram a circular massivamente pelas redes sociais, até em grupos especializados, podendo confundir o entendimento que um piloto de bimotor leve deveria ter para operar estas aeronaves com segurança.

Vamos listar aqui fatos e prováveis deduções destes fatos (alguns valores são estimados e podem variar de acordo com o número de série da aeronave).

O Baron B55 é uma aeronave bimotora leve, com capacidade para até seis ocupantes. O peso básico vazio é de aproximadamente 3.236 lb e o peso máximo de decolagem é de 5.000 libras, resultando em uma carga útil aproximada de 1764 lb (800kg) para ser dividida entre combustível, os seis passageiros e bagagem. Tem capacidade para até 136 galões de combustivel (cerca de 816 libras/370 quilos).

A aeronave faria a rota de SWEJ até SBGO (Goiânia), uma distância de aproximadamente 450NM. Considerando a quantidade de passageiros, bagagem e combustível, pode-se estimar que estaria operando próximo ao peso máximo de decolagem.

Distância de SWEJ aSBGO de cerca de 450 NM
De SWEJ a SBGO são aproximadamente 450 NM


A aeronave decolou de SWEJ, uma pista de 1026m de comprimento a 988ft de altitude. Um Baron B55 no peso máximo de decolagem, com temperatura ambiente de 25ºC e vento calmo, necessita cerca de 520m (1700ft) de corrida no solo e cerca de 760m (2500 ft) para superar obstáculo de 50ft de altura. A distância de aceleração e parada, considerando uma velocidade de decisão de 84 nós, é de aproximadamente 1097m (3.600ft).

Distância de decolagem do B55 sobre obstáculo de 50ft seria de 760m (2.500ft)

A distância de aceleração e parada do B55 seria de 1097m (3.600ft)


A aeronave foi encontrada aproximadamente a 500 metros da pista (foto principal). Não tenho informação se foi no setor da decolagem ou se no setor de aproximação em um eventual retorno para pouso. As características dos destroços são compatíveis com um impacto de baixa velocidade horizontal e elevada razão de afundamento. O fogo e explosões pós-impacto, relatados por testemunhas, são compatíveis com a existência de combustível nos tanques da aeronave. Os seis ocupantes sofreram lesões fatais.

NINGUÉM AINDA SABE o que aconteceu neste evento e a tarefa e autoridade de determinar as causas é tão somente do CENIPA. Porém, a quantidade de opiniões emitidas por pilotos nas redes sociais, sem qualquer fundamento técnico sobre desempenho de um bimotor leve com falha de motor em voo, nos traz elevada preocupação e, novamente, a oportunidade de relembrar alguns conceitos essenciais sobre a operação desta categoria de aeronaves, independente do que ocorreu neste evento.

O Beechcraft Baron 95-B55 voou pela primeira vez em 1960 e foi certificado conforme os requisitos do Civil Aviation Regulation Part 3 (CAR 3), anterior ao CFR Título 14 Parte 23. O Pilot’s Operating Handbook / Airplane Flight Manual da aeronave apresentam as cartas de desempenho de gradiente de subida com um motor inoperante. Nas condições estimadas do acidente, considerando a aeronave no peso máximo de decolagem, o gradiente de subida com um motor inoperante (OEI) seria de aproximadamente 3%. Este é o valor mostrado no manual e os pilotos tendem a acreditar que uma falha na decolagem vai resultar neste gradiente de subida. Mas isto NÃO é verdadeiro.

- ISTO NÃO É VERDADEIRO -

Gradiente de subida do BE55 com um motor inoperante (OEI)

A carta de gradiente de decolagem com um motor inoperante define, no seu canto superior esquerdo, as condições para aquele gradiente ser alcançado: potência de decolagem, trem de pouso recolhido, flaps recolhidos e hélice embandeirada. Portanto, se alguma destas condições não estiver presente, a aeronave não apresentará o desempenho mostrado na carta. Se a falha ocorrer antes do recolhimento do trem, antes do recolhimento do flap ou antes do embandeiramento da hélice, o avião não terá o desempenho mostrado na carta. E ninguem pode prever qual será o desempenho pois isso não fez parte da campanha de testes da aeronave. Por que não?

A categoria de aviões bimotores leves está apenas um degrau acima dos monomotores em termos de segurança operacional e seu desempenho é regulado atualmente pelos requisitos de certificação do CFR Título 14 Parte 23 (ou o equivalente RBAC 23 no Brasil). Os requisitos em vigor na época de homologação do Beech Baron B55, CAR 3, diziam o seguinte:

Sec. 3.85a - Requisitos de Subida.

(a) ...

(b) Subida com um motor inoperante: todos os aviões multimotores que tiverem uma velocidade de estol Vs0 maior do que 70mph devem ter uma razão de subida constante de ao menos 0,02 Vs² em pés por minuto a uma altitude de 5.000 ft com o motor crítico inoperante e: 

 (1) Motor restante a não mais que a potência máxima contínua;

(2) Hélice do motor inoperante na posição de mínimo arrasto;

 (3) Trem de pouso retraído;

 (4) Flaps das asas na posição mais favorável; e

 (5) Cowl flaps na posição usada nos testes de refrigeração especificados na seção (...).


Parte da tabela sobre requisitos de subida da Advisory Circular AC-23-8C, englobando as aeronaves com peso de decolagem menor do que 6.000lb (posterior à certificação do Baron 95-B55)

Os requistos CAR 3 aplicados ao Beech Baron B55, assim como o susequente CFR Título 14 Parte 23 aplicável às aeronaves certificadas depois de 1965, em nenhum momento abordam desempenho de subida em configuração de decolagem para essa classe de aeronaves. Os requisitos para aviões multimotores com menos de 6.000lb de peso máximo exigem desempenho positivo apenas em configuração lisa, hélice embandeirada e a 5.000ft de altitude. Portanto, NÃO EXISTE REQUISITO para aviões bimotores leves, com peso menor do que 6000lb, demonstrarem desempenho positivo de subida em CONFIGURAÇÃO DE DECOLAGEM. Após uma falha de motor na decolagem, aviões desta categoria devem ajustar a configuração aerodinâmica e manter ou a velocidade de melhor ângulo de subida monomotor (Vxse) ou de melhor razão de subida monomotor (Vyse), respectivamente 91kt e 100kt para o B55, pois estas velocidades resultarão no melhor desempenho que o avião pode fornecer para aquelas condições operacionais. 

A tentativa de reduzir a velocidade para manter o voo provoca aumento significativo do arrasto aerodinâmico e coloca a aeronave muito próxima da velocidade de estol ou da velocidade mínima de controle (Vmca), na maioria das vezes levando ou à um impacto de baixa velocidade mas com elevada razão de descida (estol) ou perda do controle direcional e impacto em espiral descendente (Vmca), ambos fatais. Após uma falha de motor, o piloto deve manter a velocidade e a configuração recomendada pelo manual pois isto resultará no melhor desempenho, mesmo que seja uma descida. E se resultar em descida, o piloto deve preparar o pouso forçado em condições controladas, na velocidade de descida recomendada, sem deixar a aeronave estolar antes do toque. Não há mais nada a ser feito.

O próprio manual do B55, no capítulo de procedimentos de emergência, define que, no caso de uma falha de motor logo após a saída do solo e em voo, um pouso imediato é recomendável independente do peso da aeronave. O manual declara que a continuação do voo não poderá ser garantida se o peso de decolagem exceder o peso determinado pelo gráfico de peso de decolagem. 

Procedimentos de Emergência do Beech Baron B55
 

Vejam que o texto do procedimento de emergência não deixa tão claro para o piloto que o desempenho mostrado no gráfico só ocorre com a aeronave na configuração lisa, com trem e flap recolhidos e com a hélice do motor inoperante embandeirada. Muitos pilotos acreditam, erroneamente, que terão gradiente positivo na decolagem, mas isto não é verdade enquanto a aeronave não estiver na configuração prevista na carta. Ninguém sabe qual o desempenho do avião com trem e flaps baixados e com hélice não embandeirada pois isso nunca foi testado nem pelo fabricante, mas alguns pilotos nas redes sociais chegam até a citar valores e regulamentos que não existem. Já imaginaram o quanto estas opiniões equivocadas ou sem fundamento podem influenciar negativamente um piloto menos avisado e provocar outra tragédia? 

Neste tipo de emergência em bimotores leves, o foco deve ser manter o controle da aeronave e a velocidade recomendada no manual, mesmo que isso leve ao pouso forçado. Mas o que acontece na prática, o tal erro clássico, é que com o arrasto excessivo do trem de pouso baixado, dos flaps estendidos e da hélice em molinete, o piloto tenta extrair um desempenho que a aeronave não tem e acaba permitindo um decréscimo da velocidade até chegar no estol ou na Vmca, tornando-se mais uma vítima do clássico acidente fatal com bimotores leves.

Mais uma vez, ninguém sabe ainda o que aconteceu no acidente com o B55. Enquanto a investigação não termina, enfatizamos a importânica de conhecer o desempenho e limitações do seu bimotor leve, sabendo em cima de que base de certificação ele foi homologado, assim como os procedimentos de emergência: isto é crucial para garantir a sobrevivência dos ocupantes em caso de falha de um motor em voo.






20 de novembro de 2020

ROLAMENTO DINÂMICO EM HELICÓPTEROS





- Capotamento em helicóptero pode surpreender o piloto mais experiente - 

Um helicóptero em serviço aeromédico estava iniciando a decolagem para o pairado quando foi envolto por uma nuvem de poeira levantada pelo rotor. O piloto comandou o pouso, aguardou a poeira se dissipar e tentou decolar novamente. Envolto outra vez pela poeira, agora o helicóptero se moveu lateralmente e tocou um dos esquis no solo, capotando e sofrendo danos graves. Este tipo de acidente, ainda pouco compreendido e muito mais frequente do que se imagina, chama-se rolamento dinâmico e pode acontecer com qualquer piloto, independente da sua experiência, do tipo de helicóptero ou de operação que realiza. Alguns manuais de operação alertam que o grande perigo do rolamento dinâmico vem da sua característica de ocorrer dentro da faixa que normalmente se permite durante o voo. Em outras palavras, o aparelho pode ser colocado nesta condição bem antes que o piloto possa reconhecer.

Um helicóptero pode capotar em duas situações: quando se excede o ângulo de rolamento estático ou o de rolamento dinâmico. O primeiro é aquele para o qual um objeto deve ser inclinado de modo que o seu centro de gravidade fique diretamente sobre o ponto de apoio (figura 1). Se estiver inclinado além deste ângulo, o objeto capota. Se estiver em ângulo menor, retorna à posição de repouso. Para a maioria dos helicópteros, o rolamento estático acontece entre 30 e 35 graus e dificilmente é atingido em operação normal perto do solo. 

O rolamento estático acontecerá se a projeção vertical do CG exceder o ponto de apoio.



          Já o rolamento dinâmico é uma condição onde o piloto não tem mais autoridade de controle para evitar uma capotagem e pode acontecer em ângulos bem menores que do rolamento estático. Para entender esta falta de autoridade, é necessário conhecer a mecânica de controle lateral de um helicóptero. Em situação de equilíbrio, a linha de empuxo do rotor principal age diretamente sobre o centro de gravidade lateral (CG). Quando o piloto comanda o cíclico lateralmente, está inclinando o empuxo e provocando uma distância entre a linha de empuxo e o CG. Esta força deslocada do ponto de apoio produz um momento de rolamento (figura 2).



         A autoridade que o piloto tem de controle em torno do eixo longitudinal (rolamento) depende de dois fatores: primeiro, da distância que se coloca entre a linha de empuxo e o eixo de rotação, ou seja, quanto maior esta distância, maior a potência de controle. O outro fator é a quantidade de massa em torno deste eixo, pois quanto maior a inércia maior a dificuldade de iniciar ou de conter o movimento.

Em voo normal, tudo ocorre de forma previsível porque o eixo de rotação é o CG. O problema surge durante um deslocamento lateral em voo pairado quando o helicóptero entra em contato com o solo. Esta condição estabelece um novo ponto de apoio no trem de pouso. Imagine, olhando novamente a figura 2 acima, que o eixo de rolamento passa agora a ser o ponto de contato com o solo e não mais o CG. A partir deste instante, o aumento da distância entre a linha de empuxo e o novo ponto de apoio acelera incrivelmente o rolamento. Além disso, praticamente toda a massa do helicóptero estará em torno do novo ponto de apoio, ou seja, o helicóptero vai ter muito mais inércia no sentido de continuar o rolamento.  Observe no video abaixo, como a velocidade de giro aumenta exponencialmente quando o esqui inadvertidamente faz contato com o solo:


Esta tendência seria contrariada pelo uso do cíclico para o lado contrário. Entretanto, a correção também fica prejudicada, pois, se o piloto retardar a aplicação do comando, a linha de empuxo não vai agir por fora do eixo de rolamento e terá pouca ou nenhuma efetividade para interromper o movimento de rotação (figura 3). Podemos ter um rolamento dinâmico com baixissima inclinação, com ângulos facilmente atingidos se houver contato do trem de pouso durante um deslocamento lateral.

Se o piloto tenta contrariar com o cíclico, a linha de empuxo ainda por dentro do ponto de apoio não produzirá momento para contrariar o rolamento inicial da fuselagem


O grande problema é que a reação do piloto normalmente agrava a situação. Quando o helicóptero se inclina além do esperado, a resposta instintiva do tripulante é puxar o coletivo para tentar se afastar do solo. Isto não deve ser feito. Com uma das pernas do trem de pouso apoiada, esta resposta aumenta o empuxo do rotor principal no sentido do giro e aumenta a tendência do helicóptero capotar. Para interromper o movimento, o piloto deve se livrar do empuxo pois, durante esta condição, não há como saber se ele está acelerando ou contrariando o movimento de rotação. Isto é feito simplesmente baixando-se o coletivo. Ao eliminarmos o empuxo no rotor, permitimos que o peso da aeronave atue contra o movimento de rotação (figura 4). Claro que esta ação só será efetiva se o helicóptero ainda não tiver atingido o ângulo de rolamento estático. A atuação no manche cíclico tem pouca efetividade.

Quando se remove o empuxo do rotor principal, caso o helicóptero esteja ainda abaixo do ângulo de rolmento estático e com baixo momento de rolamento, o rolamento dinâmico poderá ser evitado


A mesma teoria se aplica às operações em terreno inclinado. Nestes casos, é realmente necessário apoiar o aparelho em um dos trens de pouso e girar em torno deste ponto. Geralmente, a decolagem impõe os maiores cuidados neste tipo de operação. A técnica utilizada consiste em mover o cíclico lateralmente em direção ao lado alto do terreno, ao mesmo tempo em que aumenta o passo coletivo. Isto deve ser feito suavemente, colocando o helicóptero em atitude nivelada antes de sair do solo (figura 5). Durante esta fase deve haver o cuidado de não permitir que se desenvolva uma velocidade angular em torno do ponto de apoio. Também não se deve aceitar uma decolagem que não seja exatamente na vertical, pois o helicóptero estaria em desequilíbrio ao sair do solo e isto provocaria um forte momento de rolamento. Caso o piloto perceba o helicóptero se inclinando em direção à parte mais alta do terreno, deve  reduzir o passo coletivo para retornar a uma atitude nivelada antes de continuar na decolagem. Se, por outro lado, o esqui mais alto começar a sair primeiro, o coletivo deve ser reduzido para se verificar se o esqui baixo não esta preso no solo por algum motivo.

Operação em terrreno inclinado


Em síntese, a redução do coletivo é muito mais eficiente no controle de rolamento do que o cíclico, porque diminui significativamente o empuxo total no rotor principal, enquanto o cíclico apenas o inclina. Na maioria dos casos, uma redução moderada, na razão de todo em cima à todo em baixo em dois segundos, é adequada para interromper a rotação. Deve haver cuidado de não baixar o coletivo muito rapidamente, para evitar um impacto da pá do rotor principal com a fuselagem. Uma redução abrupta sobre terreno inclinado também pode induzir o helicóptero a se apoiar no esqui baixo e, com a inércia, iniciar um rolamento morro abaixo. Obviamente, manobras muito rentes ao terreno aumentam a chance de um contanto inadvertido e de um acidente por rolamento dinâmico, como mostrado nos vídeos.

O pleno domínio do aparelho é essencial para prevenir este tipo de acidente. O resultado depende do piloto, da rapidez com que identifica o problema e da precisão na pilotagem. Uma atuação incorreta nos controles pode intensificar o rolamento e levar o helicóptero a uma atitude irrecuperável.


 David Branco Filho

Publicado pela primeira vez na Revista Aero Magazine, 2002

Ilustrações: M. Prado

27 de outubro de 2020

PERDA DE CONSCIÊNCIA SITUACIONAL

Onze dicas essenciais para identificar uma das mais perigosas falhas humanas em acidentes aéreos

        

    A tecnologia tem tornado a aviação cada vez mais segura. As aeronaves atuais possuem sistemas redundantes e inúmeros alarmes e proteções contra falhas. Quando um equipamento deixa de funcionar como deveria, um aviso se acende no painel e o piloto reporta-se ao “check-list”, onde vai encontrar procedimentos de emergência para lidar com qualquer situação previsível. Devido a este alto nível de proteção, as aeronaves de hoje possuem excelentes índices de confiabilidade técnica.


             Por outro lado, quando o foco é o tripulante parece não existir nenhum tipo de alarme que indique uma degradação de desempenho durante a operação e nem procedimentos no check-list. Como a grande maioria dos acidentes aéreos estão atrelados à falhas humanas, seria extremamente valioso, como ferramenta de prevenção, se houvesse como alertar o piloto quando o seu desempenho estivesse diminuindo. Apesar de parecer difícil à primeira vista, existe sim uma forma de identificar sutis colapsos no desempenho humano durante o voo e preparar-se para atenuá-los. Uma das falhas apontadas com alarmante frequência nas investigações de acidentes tem sido a perda de CONSCIÊNCIA SITUACIONAL da tripulação.  Mas o que é consciência situacional e como a sua falta poderia conduzir a acidentes?

 

Definição

          Consciência Situacional (CS) é a percepção precisa de todos os fatores que estejam afetando a operação da aeronave. Significa que o tripulante consegue tanto PERCEBERCOMPREENDER a situação, como PROJETAR os acontecimentos futuros na operação da aeronave. Dizer que um tripulante tem consciência situacional é um jeito bonito de dizer que ele está “enxergando o cenário geral” e que está preparado para o que pode acontecer pela frente. Os problemas surgem quando a percepção que ele possui não corresponde à realidade, pois isto pode levar à decisões incorretas na cabine, afetando a segurança do voo. 

     Sendo a perda de CS um aspecto tão importante e frequente em acidentes aéreos, organizações de treinamento compilaram vários indicativos de que um tripulante estaria perdendo consciência situacional. Estes indicadores funcionariam como uma luz de aviso no painel de alarmes, só que, ao invés de alertar para falhas mecânicas, estariam advertindo para uma redução do desempenho do ser humano. Da mesma forma que uma luz de alarme de gerador nos faz prestar mais atenção ao sistema elétrico, o aparecimento de um ou mais indicativos de perda de consciência situacional devem ser vistos como gatilhos para alertar o piloto sobre o seu próprio desempenho e sobre a operação da aeronave

     São ONZE os indicadores de perda de C.S. que o tripulante deve conhecer e comentaremos como interpretar cada um deles. 

 

1.  Falha em atingir metas

Todo voo envolve atingir uma série de parâmetros esperados, seja a hora estimada de chegada, o consumo, a velocidade, potência, razão de subida, etc. Se estes parâmetros não são atingidos, é provável que esteja acontecendo algo que o piloto não está acompanhando. Suponhamos, por exemplo, que a velocidade de subida prevista para seu avião seja de 150kt. Após a decolagem, o aparelho não desenvolve mais que 120 kt. Claramente, uma meta não foi atingida. Mas qual o motivo? As possibilidades são várias: talvez o trem de pouso não tenha sido recolhido, o flap ainda esteja estendido, a potência de decolagem não esteja ajustada ou a atitude em arfagem esteja maior que o previsto. O indicador de perda de C.S. deve, portanto, funcionar como um alerta para o tripulante. Para detectar o que está acontecendo é necessário que ele revise a operação para tentar identificar a causa. Vejamos outro exemplo. Durante um voo em rota, você estimou a hora para chegar a um determinado fixo de controle, mas já passaram cinco minutos e nada do ponto. Meta não atingida. Reveja logo o planejamento. Será que as proas estão corretas? Foi usada a velocidade prevista? Um vento de proa retardou o deslocamento? Parecem ações simples e óbvias, mas o desconhecimento deste conceito causou dezenas de mortes no fatídico voo RG254, um Boeing 737 que saiu de Marabá para Belém em 1989 e nunca chegou ao destino, fazendo um pouso forçado noturno na floresta amazônica. Os tripulantes levaram mais de uma hora além da estimada no destino para perceber que tinham tomado a proa incorreta em rota. Também não atinaram que deveriam estar falando com o Controle de Aproximação de Belém pelo rádio VHF de curto alcance, mas só conseguiam comunicar por meio do rádio HF de longo alcance, ou que os equipamentos de navegação a bordo não recebiam nenhum sinal do aeroporto de destino. Ou seja, parâmetros esperados não foram atingidos e não dispararam na tripulação a necessidade de rever a situação. Em resumo, se alguma meta não foi atingida, revise a sua operação imediatamente.

O Boeing 737 tomou a proa incorreta após a decolagem e, mesmo com vários sinais de que podia haver algo errado, os tripulantes levaram mais de uma hora para perceber
 

2.  Uso de procedimento não documentado

Os manuais de uma aeronave estão repletos de procedimentos. Quando o piloto os segue, o aparelho apresenta o comportamento previsto nos manuais. Ao utilizar as técnicas publicadas atingiremos as metas comentadas no item anterior, que por sua vez aumentam o nível de CS. Quando o piloto se desvia dos procedimentos, usando os famosos macetes, ele começa a perder consciência situacional, justamente porque não sabe como o avião vai reagir. Um exemplo típico é a famosa aproximação de baixo ângulo, que geralmente ocorre quando o piloto presume que a pista é curta para o desempenho de pouso do seu avião e decide usar esta "técnica". Uma rampa de baixo ângulo na aproximação aumenta a dispersão horizontal, tanto para mais quanto para menos, e resulta em aviões flutuando demais no arredondamento e varando a pista ou, pior, tocando o trem de pouso antes da cabeceira e sofrendo danos graves.  O fato é que, quando o piloto usa um procedimento não previsto, ele passa a ser literalmente um piloto de teste, sem o conhecimento e o suporte de engenharia que os verdadeiros pilotos de teste possuem. Em aviação, quem inventa está se expondo a riscos deconhecidos com consequências imprevisíveis.

Um Cessna Citation tocou antes da pista durante uma aproximação com rampa baixa, sofrendo danos graves e provocando lesões fatais aos ocupantes
 

3. Desvio dos procedimentos padronizados

Quando realizamos uma atividade continuadamente segundo um mesmo padrão, fica mais fácil perceber alguma alteração. Qualquer variação do normal será facilmente notada, o que é bom para a CS. Por outro lado, realizar procedimentos de forma diferente do padrão, exige uma atenção consciente e dirigida, removendo a atenção do tripulante de outros aspectos que podem representar algum nível de risco. Certa vez, durante uma aproximação final para pouso, o piloto percebeu que estava muito alto. O procedimento previsto, todos sabemos, seria arremeter e prosseguir para novo tráfego padrão. O piloto, entretanto, reduziu todo o motor (power off), abriu os spoilers e comandou uma curva de 360° a partir da vertical da cabeceira para enquadrar novamente a final. Como estava executando um procedimento diferente do que estava acostumado, não tinha mais as referências usuais do tráfego padrão para perceber, durante a curva, que estava ficando baixo demais. Ao enquadrar a final, ainda tentou arremeter, mas o motor em marcha lenta não acelerou a tempo. O avião estolado colidiu com a parte traseira em um barranco antes da pista e perdeu metade da fuselagem. Portanto, é bom lembrar que, quando executamos um procedimento de forma diferente, teremos mais dificuldade para detectar os eventuais desvios. E aí o nível de risco aumenta.

 

4.  Violação de mínimos ou de limitações

A operação de um avião envolve uma série de limitações, justamente com o objetivo de manter o nível de segurança. Quando um piloto viola estas limitações, ele provavelmente não sabe quais as reais implicações na operação. Qual o fator, por exemplo, que limita o peso de decolagem de um avião multimotor? Será a capacidade de subida monomotor, o comprimento de pista ou o limite estrutural do avião? Para cada circunstância, é um destes fatores que está em evidência. Um piloto pode violar o limite de peso raciocinando apenas com a capacidade de subida monomotor e não saber que naquelas condições a limitação é de pista. E estará decolando alheio aos riscos reais envolvidos com aquela operação específica. Certa vez, ao participar de um treinamento teórico para voar um monomotor de passageiros, ouvi o instrutor de peso em balanceamento garantir que não era necessário cumprir os limites de balanceamento do avião, pois ele já havia voado além dos limites de centragem longitudinal e não havia acontecido nada. Fiquei na dúvida se ele sabia mesmo sobre o que estava falando. 

É importante que o tripulante tenha em mente que o fabricante é a parte menos interessada em colocar limitações no seu produto, pois os limites operacionais afetam a competitividade com aeronaves concorrentes. Se existem limitações nos manuais, é porque há um forte motivo para estarem lá, embora nem sempre estejam explícitados nos manuais de voo.  Ao violarmos limites do avião, estamos caminhando em terreno desconhecido e isto representa baixa consciência situacional. 

 Outra área são os limites  colocados pelos regulamentos. A aviação trabalha com uma margem de segurança. Os limites existem para que, mesmo que algum imprevisto aconteça, ainda haja uma margem de proteção antes do acidente. Por exemplo, o combustivel a bordo deve ser suficiente para ir da origem até o destino, mais um campo alternativo e mais um adicional de reserva. Alguns operadores insistem em abastecer com o mínimo para ir até o destino, por varios motivos injustificáveis. Só que isto compromete aquela margem de segurança que cobriria os imprevistos. O acidente com um Avro RJ85 na Colômbia, que decolou com combustivel exato para ir até o destino e famoso por vitimar um time de futebol brasileiro, mostra claramente como um fator externo (uma outra aeronave em emergência para o mesmo campo) pode corroer a ínfima margem de segurança que os pilotos tinham deixado para aquele voo, provocando um acidente grave e a morte de dezenas de pessoas.

Aeronave RJ85 não tinha combustivel de reserva nem para uma órbita e caiu a poucos minutos do destino
O Avro RJ-85 não tinha combustivel nem para uma órbita extra e caiu a poucos minutos do destino provocando 71 mortes
     

5.  Ninguém voando o avião

Como qualquer ser humano, o tripulante está sujeito a um rebaixamento do nível de atenção quando submetido a situações rotineiras. É muito comum que isto aconteça em tal extensão que ninguém a bordo esteja monitorando a condição atual ou a progressão do voo. Certa vez, um turboélice de passageiros estava em procedimento de subida para o nível de cruzeiro. Ao cruzar 12.000 ft, a chefe de equipe foi à cabine e perguntou ao comandante se era possível subir um pouco mais rápido, para que ela pudesse iniciar logo o serviço de bordo ao nivelarem. O comandante aumentou a arfagem, colocou o piloto automático no modo de “pitch hold” (arfagem constante) e começou a conversar com a comissária que estava em pé à porta. O copiloto estava concentrado no preenchimento do livro de bordo. O avião continuou subindo e encontrou condições de formação de gelo durante mais de quatro minutos. A velocidade começou a diminuir e, entretidos na conversa, nenhum dos três percebeu o que ocorria. Ao cruzar 17.000 ft, o avião estolou e entrou em uma violenta espiral descendente. A recuperação foi conseguida somente a 5.000 ft de altitude. Não havia ninguém monitorando o voo do avião. Nos modernos aparelhos automatizados, onde um voo pode ser totalmente programado no FMS (Flight Management System), esta circunstância é relativamente frequente e requer uma atenção consciente por parte dos tripulantes para sempre ter alguém monitorando a trajetória e a tração em uso.

 

6.  Ninguém olhando para fora

Da mesma forma que a anterior, quando a atenção de todos os pilotos é atraída para dentro da cabine, perde-se uma parte importante da percepção. As áreas terminais estão cada vez mais saturadas de tráfego e exigem atenção constante da tripulação, mesmo quando voando IFR. Basta dizer que a maioria das colisões em voo envolveu pilotos que estavam anotando instruções ou reprogramando o FMS. As cabines automatizadas monopolizam a atenção do piloto ou induzem à complacência. Certa vez, um Boeing 777 estava fazendo um procedimento ILS para o Aeroporto do Galeão, em condições visuais e com o piloto-automático acoplado. Havia um NOTAM informando da inoperância do ILS, mas os tripulantes aparentemente não sabiam disso. O piloto-automático seguiu um sinal espúrio de glide-slope e passou o marcador externo 600 ft abaixo da altura prevista sem que ningém percebesse. Continuou descendo na rampa falsa até que tocou o alarme do EGPWS (Enhanced Ground Proximity Warning System), cerca de 15 segundos antes do impacto com o relevo. Portanto, quando todos estão olhando para dentro, a tripulação pode não estar recebendo importantes informações visuais, principalmente se estiver à baixa altura. Colisão com pássaros é outro perigo que ficou mais evidente depois do pouso de um Airbus no rio Hudson, e que só pode ser detectado se alguém estiver olhando para fora. Perto do solo, a atenção deve ser dividida entre os sistemas do avião e o ambiente externo. Seus olhos são as melhores fontes de informação que você possui. Utilize-os.

 

7.  Problemas de comunicação

Quando a comunicação começa a ficar confusa, seja entre você e seus companheiros ou com o controle de tráfego aéreo, você talvez não esteja recebendo informações importantes para a segurança do voo. Não deixe qualquer dúvida progredir. Se não tem certeza do que foi dito, pergunte. Se sentir que seus colegas estão quietos demais, pode ser que você tenha dito algo que afetou a interação entre os tripulantes e aí vocês deixaram de ser uma equipe. Não pode haver dúvida entre os tripulantes. A única pergunta tola dentro da cabine é aquela que deixou de ser feita. Não pode haver receio de falar, de perguntar, expressar uma dúvida ou emitir uma opinião. Seja como comandante, copiloto, comissário ou engenheiro de voo, deve haver um esforço voluntário para que a informação operacional flua livremente. Questione sempre, receba os questionamentos dos outros com a mente aberta e perceba falhas de comunicação como um indicador de perda de C.S. Um problema oposto ocorre quando existe uma comunicação excessiva e supérflua nas fases de alta carga de trabalho, o que pode remover a atenção dos tripulantes para aspectos importantes do voo. Principalmente nas fases ANTES DA DECOLAGEM, APÓS A DECOLAGEM e ANTES DO POUSO,  dentro da cabine somente deve ocorrer comunicação de aspectos essenciais.

 

8.  Ambiguidade

Quando o tripulante recebe informações discordantes de duas fontes distintas, é bem provável que esteja acontecendo algo que ele não está ciente. Estas ambiguidades de informações podem incluir indicadores do painel, manuais de voo ou percepções individuais. Ambiguidades confundiram a tripulação de um jato comercial que estava em ascensão para o nível de cruzeiro. Ao cruzar 16.000 ft na subida, o copiloto fez uma observação para o comandante sobre o excelente desempenho do avião: “você percebeu que estamos subindo com 340 KIAS (velocidade indicada) e 5.000ft/min de razão?” O engenheiro de voo comentou que era porque estavam leves. O primeiro oficial aumentou o ângulo de subida para conter a velocidade que continuava aumentando. Ao cruzarem o FL 230, a aeronave estava com 405 KIAS e subindo com 6500ft/min, quando tocou o alarme de sobrevelocidade e logo em seguida houve atuação do stick-shaker (vibrador da coluna do manche para aviso de baixa velocidade). O copiloto comentou que a vibração do manche era devido ao elevado número Mach que estavam desenvolvendo. O comandante orientou para que aumentasse ainda mais a arfagem. Na sequência, um dos tripulantes reduziu as manetes de potência para não exceder a velocidade máxima. O aviso de estol tocou e o jato entrou em uma espiral descendente, atingindo uma razão de descida de 15.000ft/min  até colidir com o solo. Uma análise dos fatos mostraria que o avião estava apresentando um desempenho incoerente, do qual os tripulantes não se aperceberam. Ao contrário do que seria esperado, à medida que subiam, a velocidade indicada e a razão de subida também cresciam, apesar do aumento de arfagem. Logo antes da perda de controle, ao mesmo tempo tocou o alarme de sobrevelocidade e o stick-shaker indicativo de estol. Na verdade, as investigações revelaram que, enquanto a tripulação lia a informação de 420 Kt indicados no velocímetro, o avião estava com apenas 165 Kt (velocidade verdadeira). Este problema originara-se de um congelamento de umidade nas linhas do sistema pitot-estático, pois o aquecimento do pitot não havia sido acionado e estava enviando informações falsas aos instrumentos na cabine. No entanto, em nenhum momento os tripulantes detectaram as divergências entre o indicado e a realidade. Este caso demonstra que, quando existem ambiguidades ou quando não se está certo sobre sua situação, logicamente está se perdendo consciência situacional e exposto à um maior nível de risco. Esta condição exige uma revisão da operação e a busca pela coerência das informações recebidas.

 

9.  Discrepâncias não resolvidas

Se o piloto está operando com informações contraditórias e não faz nada a respeito, está lidando com discrepâncias não resolvidas. Isto remove a sua atenção de outros aspectos prioritários do voo, como o monitoramento da trajetória.  Certa vez, um jato cargueiro estava fazendo um procedimento de descida VOR noturno para Cruzeiro do Sul, no Acre, quando tocou o alarme de fumaça no compartimento de carga. O comandante pediu ao mecânico para ir até o compartimento verificar, mas nada foi encontrado. O alarme tocou mais oito vezes durante o afastamento e perturbou o desempenho da tripulação. Em consequência, preocupados com a sequência de alarmes, desviaram a atenção de aspectos básicos do voo, o aparelho desceu inadvertidamente abaixo da MDA e colidiu com o terreno, matando todos a bordo. Portanto, quando existir algo atrapalhando a atenção dos tripulantes, é necessário que as tarefas sejam divididas ou, caso não seja possível, que se dê prioridade para o controle de trajetória da aeronave. Discrepâncias não resolvidas podem levar ao próximo item, a preocupação ou fixação da atenção. Sempre que detectadas, as discrepâncias devem ser ou resolvidas ou isoladas para serem tratadas posteriormente.

 

10.  Preocupação ou fixação

A canalização de atenção ou a preocupação excessiva com um item específico removem a atenção do piloto de outros aspectos importantes do voo e diminuem a consciência situacional.  Um dos acidentes mais conhecidos do CRM que ilustra este fato aconteceu com um grande jato de passageiros em 1972. O widebody estava em procedimento de aproximação final noturna para a pista do aeroporto de Miami, na Florida. Depois que acionaram a alavanca de extensão do trem de pouso, os pilotos observaram que a luz indicadora de travamento do trem de nariz não estava acesa. Arremeteram subindo para 2.000 ft, acoplaram o piloto-automático e os quatro tripulantes na cabine se concentraram totalmente na resolução do problema do trem de pouso. Nesse meio tempo, houve uma desconexão inadvertida do piloto-automático, o avião começou uma suave descida até colidir com o terreno, sofrendo perda total e vitimando 99 pessoas. Portanto, durante um voo, a tripulação deve ter a capacidade de perceber que está com a atenção canalizada, dividir as tarefas e voltar a monitorar todos os aspectos importantes da operação.

 

11.  Sentimento de vazio

Todo piloto já teve aquela sensação em voo de que algo errado estava acontecendo ou para acontecer. Seria quase como uma intuição. Em 1992, por exemplo, um DC-8 estava efetuando a órbita de um procedimento IFR para o aeroporto de Quito, no Equador. Voavam em condições por instrumentos a 14.000ft, sem visibilidade externa, quando a luz do rádio-altímetro (RA) acendeu indicando menos de 2.000ft. Embora estivessem nivelados, o RA começou a indicar altura cada vez menor em relação ao solo.  Os tripulantes não entendiam o que estava acontecendo, pois estavam seguindo o perfil do procedimento e estavam em altitude elevada. Desconfortável com a situação, o comandante decidiu reagir. Iniciou uma manobra evasiva, com potência máxima. Logo em seguida, tocou na cabine o alarme do GPWS. A altitude indicada no RA continuou diminuindo, passando por 400ft, 300ft, 200ft e estabilizando em 150ft indicados. O DC-8 estava agora subindo com 20 graus de arfagem e 4.000ft/min de razão, ainda com 150ft no RA. Depois de alguns segundos, a indicação de altitude voltou a crescer e o alarme cessou. Passado o susto, o primeiro oficial achou que tinha sido um alarme falso e propôs que repetissem o procedimento, mas o comandante sentiu necessidade de revisar a operação e detectou a falha: em Quito, existiam dois equipamentos VOR, um que balizava a aerovia e outro para o procedimento de descida. O avião estava, inadvertidamente, fazendo o procedimento a partir do VOR da aerovia e entrou em rumo de colisão com a cordilheira dos Andes. Mas antes mesmo de receber o alarme do GPWS, o comandante acreditou nos sinais que recebia e reagiu decididamente, evitando uma tragédia por muito pouco. A experiência tem mostrado que quando o algum tripulante acha que algo errado está acontecendo, na maioria das vezes isto é verdade. Estas circunstâncias são típicas em ocorrências do tipo CFIT (Controlled Flight Into Terrain). Nestes casos, as gravações de voz de cabine mostram que a tripulação até percebe que algo não está bem, mas não acredita na intuição e deixa de reagir.

 

          Examine novamente os ONZE  INDICADORES de perda de consciência situacional. Eles apontam situações que ocorrem com frequência nas operações aéreas, sem que soubéssemos de sua importância. Detectar qualquer um desses indicadores não quer dizer que um acidente seja iminente. Ao contrário, se o piloto perceber que alguns destes indicadores descrevem a situação que está voando no momento, estará tendo a oportunidade de retomar o nível de consciência situacional, enxergando o cenário geral e aumentando o seu nível de segurança.

    Cartão com resumo dos onze indicadores de perda de CS

 

Recuperação de CS

          O reconhecimento da perda de CS leva ao passo seguinte, o de admitir esta perda para si e para os outros, muitas vezes o passo mais difícil. Ninguém gosta de reconhecer sua falibilidade, mas o risco é muito grande para se manter a perda de CS em segredo. Uma simples frase para o outro tripulante, do tipo “fique atento, estou um pouco distraído” aumenta o nível de alerta do seu parceiro. Mas pode ser que não haja outro tripulante ou talvez ele esteja tão desconectado quanto você. Os especialistas recomendam vários passos para restabelecer o equilíbrio e tentar retomar controle da situação. A recomendação mais importante e conhecida é VOAR a aeronave, preocupar-se primeiro com aspectos básicos do voo, como altura, velocidade, autonomia, distância de obstáculos, e que pode ser dividida em algumas técnicas úteis. Se você perceber os sintomas de perda de CS, considere a realização dos seguintes passos:

1. Afaste-se dos obstáculos. Se estiver a baixa altura, suba. Se estiver voando em formação com outra aeronave, aumente a separação. Ao suspeitar que o outro tripulante perdeu CS, seja direto e questione se houver tempo disponível. Quando não houver tempo, determine uma ação apropriada.

2. Estabilize a aeronave. Após afastar-se dos perigos imediatos, estabilize as condições. Use um nível de automação que diminua sua carga de trabalho. Ao reduzir a quantidade de mudanças, você permite que sua mente tenha a oportunidade de atualizar-se com a situação.

3. Disponibilize tempo. Se estiver voando em IFR, requisite uma proa para algum fixo, pois isto lhe dará tempo para pensar. Requisite uma órbita, ao invés de uma descida em rota. Se já chegou onde devia, faça outro tráfego. Em aviação, a velha máxima “antes tarde do que nunca” se aplica muito bem.

4. Busque informação. Utilize todas as fontes imediatas disponíveis, como os outros tripulantes, o controle de tráfego aéreo, os manuais de voo e sua experiência anterior. Resolva qualquer discordância interna. Descubra porque você chegou antes ou depois, porque consumiu muito ou pouco, onde está o outro avião que estava sendo vetorado para o mesmo fixo, questione a autorização de tráfego que você achou confusa ou pesquise a razão de estar se sentindo desconfortável com alguma situação. Em resumo, restaure a confiança em você e em seu equipamento antes de tomar novas decisões.

Lembre-se que o desfecho de seu voo depende de você. Muitas vezes, apenas você poderá identificar uma diminuição no seu desempenho. Os indicadores de perda de CS são ferramentas valiosas de se ter em mente para ajudar a retomar o domínio da situação. Cabe a você utilizá-los em todo e cada voo.

 

ESTE TEXTO ABORDA ASSUNTO DE UMA DAS AULAS DO MEU TREINAMENTO DE CRM


Referências:

Treinamento para Consciência Situacional, Douglas Schwartz, Revista SIPAER

Cartão de Alerta Situacional, Paulo M. P. Ribeiro

CRM, The Private Pilot’s Guide, Thomas Turner

Relatórios Finais de Acidentes, CENIPA

Redefining Airmanship, Tony Kern

Air Disaster, MacArthur Job

15 de maio de 2020

CRM na INSTRUÇÃO DE VOO


O pequeno Cessna 152 subia lentamente, procurando atingir os 2.000ft de altura para começar as manobras de treinamento. A maior preocupação do aluno iniciante era manter a velocidade correta. Foi quando o motor parou de funcionar. O silêncio inesperado e repentino foi interrompido apenas pela voz firme e confiante do instrutor: “Está comigo!”. Tendo assumido os controles e realizado os procedimentos previstos na cabine, sem resultado, o instrutor percebe que a última opção é um pouso forçado. A aeronave se estabiliza no planeio enquanto o instrutor procura o local mais adequado para o pouso

Com menos que dez horas de voo totais na sua caderneta, o aluno apenas observa os acontecimentos, mas tem certeza que o “Ás” sentado no outro assento sabe sobre aquela pequena pista de terra que está ficando para trás, a esquerda deles. Logicamente deve haver alguma razão para o instrutor ter rejeitado esta opção. O aluno ainda pensa em perguntar, mas acaba se calando para não perturbar a concentração do instrutor, que está ocupado e totalmente absorto em salvar suas vidas. O Cessninha termina se acidentando em um campo arado, a menos de duas milhas da pista que o aluno tinha visto. Não houve danos pessoais, mas a aeronave sofreu avarias graves. Ao saírem do avião, ilesos, o aluno comenta:

- Poxa vida, que susto, hein! Ainda bem que saímos inteiros!
- Rapaz, é pena que não tinha um lugar melhor. O avião não aguentou o tranco – explica o instrutor.
- Bem, eu não entendi porque viemos para cá. Eu teria pousado naquela pistinha ali atrás.
- Que pista? - pergunta o surpreso instrutor.
- Aquela que estava bem debaixo de nós quando o motor parou.
- Você quer dizer que tinha uma pista bem embaixo de nós e você não falou nada?

          O Instrutor está compreensivelmente chateado, mas não percebe que ele, não o aluno, é o maior responsável pela comunicação a bordo não ter funcionado. Embora, historicamente, os acidentes com aviação leve não sejam analisados desta forma, este é um cenário clássico de falha de gerenciamento de cabine. O instrutor deixou de utilizar um recurso disponível: o outro tripulante. O acidente, entretanto, começou muito antes do motor parar. Um mês atrás, na tentativa de impressionar o aluno com seu grande conhecimento e autoconfiança, o instrutor criou um clima onde só ele falava e o aluno apenas ouvia, estabelecendo um desnível de autoridade muito elevado na cabine. Obviamente, o aluno não vai nem pensar em interferir nos procedimentos do instrutor, porque acha que ele está sempre certo.

A verdade é que, em se tratando de coordenação de tripulação, o ambiente na nacele de um Aeroboero ou de um Cessna 152, em voo de instrução, pode estar muito defasado do que acontece no cockpit de um jato comercial de 200 toneladas. Mas isto pode ser mudado.

É cada dia mais evidente que as tripulações bem sucedidas em situações de emergência são aquelas que, além do profundo conhecimento técnico, convivem em um ambiente onde a comunicação é estimulada e aberta, onde existe troca de informações. O comandante ainda é o responsável pela decisão final, mas todo o grupo deve colaborar nesta decisão. O comandante deve reconhecer que ele pode aprender com os demais tripulantes tanto quanto os outros tripulantes aprenderão com ele. Um dos maiores problemas no gerenciamento de cabine ocorre quando o comandante não tem confiança na capacidade profissional do outro tripulante. Em consequência, tende a tomar para si todas as tarefas e fica tão ocupado em voar o avião que deixa de enxergar o cenário geral, aumentando a margem de risco. Esta postura dificulta a aplicação dos conceitos do Gerenciamento de Recursos de Tripulação (CRM – Crew Resource Management) na relação instrutor-aluno, pois o instrutor pode presumir, por exemplo, que o aluno dificilmente terá alguma informação válida que ele já não saiba.

O treinamento do CRM procura diminuir a incidência de falhas humanas na operação de uma aeronave. Estas falhas humanas envolvem, entre outros, problemas de comunicação, priorização inadequada de tarefas na cabine, perda de consciência situacional e, principalmente, falhas de julgamento e decisão. Como estes problemas são comuns a todo tipo de voo, é importante que os conceitos do CRM sejam praticados desde o início da instrução, pois eles serão aplicáveis em toda a vida do piloto. Quanto mais cedo eles aparecerem na formação, mais facilmente serão absorvidos. Como, então, se poderiam utilizar os conceitos de gerenciamento de recursos durante a instrução de voo?

O treinamento de CRM tem várias vertentes, mas aqui vão apenas algumas sugestões que talvez possam aumentar a eficiência e a segurança tanto da instrução básica quanto do novo piloto em formação.

- Estabeleça um ambiente de comunicação aberta na cabine. Um aluno em instrução pode estar ansioso e, algumas vezes, inseguro. Estas circunstâncias são barreiras à comunicação com o seu instrutor. Converse com o seu aluno antes da primeira decolagem e torne claro que você deseja e espera que ele fale sobre suas idéias e dúvidas durante o voo. Se ele perceber que a velocidade está baixa, ele pode falar. Se observar algum tráfego, você quer saber. Se o aluno sentir-se desconfortável com alguma manobra, que fale. O treinamento de CRM sempre enfatiza que, independente do nível de experiência do outro piloto, ele pode ser o único que tem a informação necessária para salvar a sua vida. Não tenha receio de deixar o aluno falar. Isto não diminui a sua autoridade como instrutor, mesmo porque a decisão final é sempre sua.

- Permita-se estar errado. Instrutores talvez se sintam constrangidos quando realizam incorretamente alguma manobra. Afinal, estão ensinando e não poderiam fazer nada menos do que o perfeito. Mesmo assim, se você entrou baixo em uma aproximação de pane simulada, admita a sua falha claramente para o aluno e arremeta. A maioria dos acidentes aéreos, seja da aviação geral ou da aviação comercial de grande porte, é causada por falhas de julgamento do tripulante. Todos nós cometemos erros, mas dificilmente um acidente é resultado de uma única decisão incorreta. O grande problema está em não admitirmos uma falha, pois a probabilidade de tomarmos uma decisão errada em seguida é muito maior. Não admitir o erro desencadeia uma sequência de julgamentos falhos. Ensine ao aluno a  reconhecer seus erros e tomar decisões para diminuir as consequências destes erros o mais cedo possível. Não crie na mente dele a figura do piloto infalível. Isto não existe.

- Delegue. Na medida em que as habilidades do aluno aumentam, transfira parte da carga de trabalho para ele, de forma coerente com o seu novo nível de habilidade. Ao dividir as tarefas com o aluno, você alivia a sua carga de trabalho e pode se concentrar no cenário geral do voo.

- Procure saber o que o aluno está pensando. Muitas vezes, um piloto comete erros porque está aplicando procedimentos a uma situação que não é exatamente a que está acontecendo. Não são seus procedimentos que estão errados, mas a sua percepção. Peça ao aluno para ele próprio comentar o que acha que está acontecendo. Isto aumentará a participação dele, seu aprendizado e facilitará ao instrutor identificar porque o aluno está errando e orientá-lo. Ao identificar melhor a situação, ele com certeza vai se desempenhar melhor. Se você apenas criticá-lo, ele não vai entender porque seus procedimentos não estavam dando certo.

- Resolva os conflitos através de uma verificação externa. Se o aluno acha que o controlador  de voo falou 3.000ft e você tem certeza que foi 6.000ft, verifique a autorização. Por uma questão de princípios, não confie apenas na autoridade das pessoas para resolver uma dúvida, especialmente se for você próprio. Pilotos experientes também cometem erros. Mesmo que você só erre uma vez em 1000, esta pode ser a vez que você está errado. É assim que os acidentes acontecem: uma vez em 1000.

- Adote uma norma de conversação na cabine. As fases de voo de alta carga de trabalho, geralmente decolagens e aproximações, devem exigir a atenção total do tripulante. As grandes empresas aéreas adotam a política de “cabine estéril”, onde, abaixo de 10.000ft, não se permite qualquer tipo de atividade ou conversa que não seja relacionada com a operação da aeronave. Logicamente, não vamos utilizar este parâmetro para uma instrução básica, mas podemos adaptar esta filosofia à nossa realidade, identificando as situações que exijam maior atenção do tripulante como, por exemplo, o circuito de tráfego. Nesta hora, a prioridade é voar o avião e observar o tráfego. Guarde o “bate-papo” e outras tarefas secundárias para mais tarde.

- Faça uma avaliação do voo de forma construtiva. Se o aluno tentou se matar no último pouso e quis te levar junto, critique o pouso, não o aluno. Se você disser “neste pouso, arredondamos alto e o nariz correu para a esquerda por causa do vento de través”, isto será bem mais eficiente do que dizer “ô cara, você não consegue mesmo fazer isto direito, não é?” Lembre que o aluno já estará bastante chateado com a manobra mal feita. Não piore as coisas ainda mais transformando sua crítica da manobra em um julgamento pessoal. Esta postura afasta o aluno e diminui o seu rendimento.

- Estimule o aluno a estar sempre à frente do avião durante o voo, a estar preparado para o próximos passos, a se antecipar para os acontecimentos previstos, a verbalizar os procedimentos que serão aplicados e descrever qual será a reação da aeronave. Isto aumentará a consciência situacional dele e permitirá que ele identifique os desvios mais rapidamente e faça as correções necessárias.

          Com intensidade cada vez maior, os operadores de aeronaves têm adotado os conceitos do CRM nas suas operações, com grande sucesso para a eficiência e segurança. O gerenciamento de cabine tem um dos seus pilares na comunicação entre os tripulantes. Portanto, não apenas escute, mas ouça atentamente. Não deixe que a sua vaidade como instrutor afete a segurança de voo. Tenha o hábito de deixar o aluno falar e perguntar. E reaja de modo a motivá-lo a falar novamente. Caso contrário, você pode terminar em frente a um Cessninha acidentado, perguntando: “por que você não me avisou?”.

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