DISCIPLINA
A primeira e a mais importante das fundações é o compromisso
pessoal com a disciplina. Por definição, disciplina pode ser entendida como a
observância e o cumprimento das normas e regulamentos. Dependendo do tipo de
aviação, pilotos podem operar uma boa parte do tempo sem supervisão direta de
seus superiores e depende do indivíduo ter integridade para seguir a
regulamentação sem ninguém fiscalizando. Numa visão mais internalizada,
disciplina pode ser entendida como a força de vontade para exercer um
julgamento sensato quando existirem tentações e pressões para fazer o
contrário. Sim, sempre existirão estímulos para se afastar dos procedimentos
preconizados: pressões comerciais, pressa, vaidade, exibicionismo, preguiça, complacência
ou mesmo a falsa noção de que as regras existem para proteger os menos
capacitados. Desculpas não faltam, mas nenhuma delas justifica o alto preço que
se paga, mais cedo ou mais tarde, por desviar-se das normas e regulamentos. O
piloto deve comprometer-se incondicionalmente com a disciplina, pois as
violações são contagiosas e degradam sorrateiramente a capacidade de julgamento
e tomada de decisão. A aceitação de um pequeno desvio abre espaço para
desvios cada vez mais frequentes e mais graves, sem que a pessoa se dê conta
disto. A história da aviação está repleta de pilotos com excelentes habilidades
de voo, mas que foram traídos por julgamentos falhos decorrentes da falta de
disciplina individual. Sem esta base firmemente assentada, todo o restante da
estrutura estará comprometido, por mais habilidoso que você seja, por mais que
conheça a sua aeronave.
HABILIDADES
A segunda fundação do modelo é formada pelas habilidades de
pilotagem. Existem quatro níveis crescentes em que um aviador poderia se
encaixar. O primeiro é o da segurança e, neste estágio,
geralmente estão os pilotos que terminaram sua qualificação inicial e acabaram
de fazer seu cheque no equipamento. Operam com um nível mínimo que evite
consequências adversas por falta de habilidades motoras. Com o tempo, após um
período de experiência operacional na aeronave, atingem o grau da eficácia,
onde completam o voo de maneira segura e também atingindo os resultados
esperados. A grande maioria se sente confortável nesta condição, o que acaba
estancando seu próprio crescimento. Aqueles que não se acomodam, tentam subir
para o patamar da eficiência, onde aprendem as técnicas que
permitem a realização do voo despendendo menos recursos. Neste estágio, atingem
os objetivos propostos e ainda economizam tempo e recursos (com o cuidado de
não comprometer a segurança, claro). Finalmente, o grau mais elevado de
habilidade é o da precisão. O piloto tem um senso de autoavaliação
altamente refinado e se motiva a um constante aperfeiçoamento. Nunca se
satisfaz com os padrões existentes e busca a perfeição em todo voo, em cada
detalhe. Embora difícil de ser alcançada, mais importante que a perfeição em si
é o desejo constante de se aprimorar.
PROFICIÊNCIA
Voar um avião, ainda que por diversão, é assunto sério e o
piloto deveria estar constantemente se avaliando quanto ao seu nível de
proficiência, a próxima base do modelo de excelência. Mesmo quando trabalha sob
os auspícios de uma empresa, com programas de reciclagem para mantê-lo
atualizado, só o próprio piloto conhece realmente seu grau de competência.
Alguns se submetem aos cheques anuais desejando secretamente que o examinador
não descubra suas fraquezas. O lado negativo desta atitude é que elas vão
aparecer no momento mais impróprio. Diversos pilotos passam anos sem simular um
tráfego de emergência ou uma aproximação IFR com painel parcial. Alguns não
sabem de memória os itens críticos do checklist de falha de
motor ou não têm autoconfiança para fazer uma aproximação com forte vento
cruzado. Elevar seus níveis de proficiência depende muito da vontade do próprio
indivíduo.
Um dos métodos mais simples e mais eficientes, tanto para preservar quanto para adquirir proficiência, é o chamado “voo mental”. Consiste em uma combinação de técnicas de visualização, prática de procedimentos e condicionamento cognitivo. Pode ser feito na cabine do avião ou sentado na sala de estar. É um simulador virtual barato. Munido apenas de um checklist, uma poltrona e sua imaginação, o piloto deve visualizar passo a passo as fases de operação que deseja aperfeiçoar. Os movimentos físicos devem ser os mesmos que faria se estivesse na cabine em voo. Ao simular procedimentos de emergência, suas mãos devem se mexer como se estivessem atuando nos sistemas necessários. Isto condiciona a resposta motora e torna a reação mais rápida e instintiva quando a situação exigir. Alguns pilotos, talvez iludidos pela sua vasta experiência, podem acreditar que o voo mental seria útil apenas aos novatos. Grande engano. É uma técnica que deve ser levada a sério e é talvez o melhor recurso, depois do simulador, para treinar procedimentos, técnicas e habilidades requeridas para um voo.
PILARES DO CONHECIMENTO
Além dos princípios básicos de disciplina, habilidades e
proficiência, o exercício da profissão de aviador exige uma série de
conhecimentos específicos para sustentar suas decisões operacionais. O primeiro
pilar é o CONHECIMENTO DE SI próprio, de suas limitações físicas e
psicológicas. Questione um piloto sobre decolar em uma aeronave com problemas
mecânicos e a resposta seria um óbvio não. Mas se a pergunta for para o campo
pessoal, sobre assumir os controles de voo sem estar em condições ideais,
gripado, cansado ou estressado, a resposta pode variar. Existe uma tendência
humana, muita nítida entre a comunidade de pilotos, de se achar acima dessas
limitações fisiológicas ou psicológicas. Admitir para si próprio e para os
outros que não está em boas condições é um espelho da sua autocrítica. Um
piloto que se permita fazer um voo abaixo de sua melhor forma, não está
considerando que, em eventuais situações anormais e de emergência, ele será
exigido ao máximo e pode não ter condições de responder a altura. Mais
importante ainda é o indivíduo estar alerta às suas reações quando for
submetido a pressões externas ou internas, como pressão de horários ou uma
tendência ao exibicionismo. A capacidade de resistir a estas forças é uma clara
indicação do seu nível de maturidade.
Conhecimento da AERONAVE é outro pilar que sustenta a
execução segura da atividade aérea. Os currículos de treinamento geralmente
atendem aos mínimos requeridos por lei e um conhecimento mais profundo vai bem
além destes mínimos. O estudo deve começar com uma leitura completa da
descrição da aeronave e seus sistemas. Não adianta tentar memorizar tudo e o
piloto deve separar o que é importante do que não é. Com uma base de
conhecimento de sistemas, o aviador pode partir para o estudo do material que
assegure a sua sobrevivência: as limitações da aeronave e as emergências. Este
conhecimento pode salvar vidas e deve ser memorizado, inclusive usando o
recurso do voo mental para condicionar as respostas psicomotoras dos
procedimentos de emergência. Quando o piloto estiver tranquilo na execução
destas ações, poderá partir para áreas mais avançadas, utilizando ocorrências
reais para incentivar novos estudos. A internet é uma inesgotável fonte de
informação. Diversas páginas de órgãos de investigação de acidentes, como as do
CENIPA e do NTSB, disponibilizam relatórios de eventos que podem ser usados
para conhecer as vulnerabilidades do tipo de aeronave. É uma técnica excelente,
porque automaticamente dá relevância ao material que esta sendo estudado. Já
imaginou poder evitar um acidente porque voce leu sobre um evento igual que já
tenha acontecido? A conjugação de reciclagens contínuas e estudo focado em
ocorrências fornece uma sólida base de aprendizado do equipamento. Aviadores
que se acomodam porque conhecem o “suficiente” para voar a aeronave abrem
caminho para a complacência e inibem a continuidade do aperfeiçoamento. Ninguém
nunca vai ter certeza de que sabe o bastante para lidar com qualquer situação
que apareça em voo. Mesmo os aviadores mais experientes terão dúvidas sobre
sistemas e procedimentos. O receio de não saber tudo pode ser a motivação para
continuar pesquisando e aprendendo. Aqueles que acham que já acumularam
informação suficiente, provavelmente estão em maior risco. Estabeleça um
sistema pessoal de aprendizado que funcione pra você e dedique algum tempo a
ele até tornar-se um hábito.
Um grande número de aviadores divide a cabine com outros
tripulantes e precisa saber como se desempenhar em grupo. Uma EQUIPE
sintonizada congrega conhecimento e experiência para confrontar as novas
situações de voo. Os treinamentos de gerenciamento de tripulação (CRM) abordam
habilidades de relações interpessoais, de liderança, comunicação e cooperação,
entre outros. Trabalhar em equipe nem sempre é fácil, mas, se feito da forma
correta, pode otimizar a segurança e eficiência da operação.
Sob o foco do AMBIENTE estão o conhecimento do ambiente físico, envolvendo meteorologia e infraestrutura, bem como o ambiente regulatório, as normas que orientam e que balizam nossas ações no meio. O RISCO, outro dos pilares, está sempre presente nas atividades de voo. Para evitar o risco totalmente, evitaríamos o voo, o que não é nosso objetivo. Nossas decisões envolvem risco e o controle desse risco. Devemos estar preparados para os riscos conhecidos e planejar. Para este fim, é de grande valor conhecer o perfil da ATIVIDADE, as suas peculiaridades e suas armadilhas. Neste ponto, o estudo de relatórios de acidentes ocorrido com o mesmo tipo de missão acaba fortalecendo os pilares do conhecimento e aumentando a segurança operacional.
CONSCIÊNCIA SITUACIONAL
Na medida em que aqueles pilares estejam bem construídos,
juntamente com um entendimento do ambiente, da missão e dos riscos associados,
facilitam que o piloto perceba melhor tudo que passa a sua volta. Esta
percepção precisa do que está acontecendo consigo, com a sua aeronave e no
ambiente, tanto agora quanto no futuro próximo, é chamada de Consciência
Situacional (CS). Um exemplo clássico de baixa CS é o caso daquele jato de
passageiros que ficou mais de uma hora circulando perto do aeroporto, enquanto a
tripulação concentrava-se em resolver uma pane no sistema de trem de pouso, e
acabou caindo por falta de combustível. Todo piloto precisa exercitar o
conceito de “estar à frente da sua aeronave”. Para isto, deve ser capaz de
identificar os elementos da situação atual, compreender o seu significado e
projetar as implicações em cenários prováveis.
Pode haver três diferentes níveis de CS. No nível mais básico, o piloto simplesmente percebe o que está acontecendo, como uma luz de aviso no painel, sabe o que isto significa e reage. No segundo nível, ele coloca o evento dentro de um contexto maior, agregando significado ao fato. Um piloto voando um pequeno monomotor sobre terreno montanhoso deve interpretar uma indicação de baixa pressão de óleo de forma diferente da que se estivesse voando um multimotor no circuito de tráfego. No terceiro nível de CS, o piloto percebe e assimila o significado do evento, e também projeta as suas implicações para o futuro. Os inimigos da CS são a atenção canalizada, a distração e a saturação de tarefas, pois impedem que informações relevantes sejam percebidas oportunamente. Todo esforço deve ser feito para identificar o aparecimento destas condições durante o voo e na adoção de medidas para atenuar suas implicações no desempenho pessoal.
JULGAMENTO E TOMADA DE DECISÃO
Os vários elementos do modelo de excelência, incluindo
disciplina, habilidades, conhecimento e consciência situacional, se conjugam
para sustentar uma boa capacidade de julgamento. Decisões operacionais
acertadas dependem da avaliação correta da situação geral e isto nem sempre é
fácil no ambiente dinâmico do voo. Julgamentos deficientes têm sido apontados
como o fator mais comum nas investigações de acidentes, muito mais do que
falhas de pilotagem ou do equipamento. Quando o tripulante erra em suas
decisões, provavelmente é por falta de suporte em alguma das áreas já
mencionadas. O julgamento está intimamente relacionado com a personalidade do
indivíduo, com a experiência, com a preparação pessoal, e deve ser visto como
uma combinação de arte e ciência. A ciência pode ser aprendida e a arte deve
ser praticada. É altamente recomendável que o piloto, após cada voo, faça uma
autocrítica para determinar a qualidade de suas decisões, onde elas poderiam
ter sido melhores e por que. Manter uma espécie de registro pode auxiliar muito
neste processo de aprendizado. Assim como qualquer outra habilidade de voo, o
julgamento também pode ser desenvolvido e, em última análise, será tão bom
quanto o piloto queira que seja.
CONCLUSÃO
O modelo de excelência permite que o piloto se autoavalie e
identifique áreas que precisa aprimorar. O desenvolvimento profissional deve
partir de uma motivação interna. Nenhum aviador terá instrutores por toda a
vida ou um programa de treinamento exclusivo para suas necessidades. Aquele que
deseja o aperfeiçoamento contínuo, deve se tornar seu próprio mentor e elaborar
seu currículo de treinamento. Se um piloto suspeita que suas capacidades
individuais não estejam no nível que deveriam, ele tem a obrigação de corrigir
isto. O piloto consciencioso reconhece a necessidade de estar sempre buscando
seu melhor desempenho. Afinal de contas, não é ele que escolhe a oportunidade
para mostrar seus talentos. É a oportunidade que o escolhe.
Referências:
Redefining Airmanship,
Tony Kern
What All Good Pilots Do,
Robert Besco
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