Um pequeno avião bimotor decolou de Florianópolis com plano
IFR para Lages (SC) com dois pilotos e dois passageiros. O aeródromo de
destino estava abaixo dos mínimos meteorológicos, com nevoeiro e visibilidade
muito reduzida. A tripulação cancelou o plano IFR, iniciou a descida e tentou o
pouso mesmo naquelas condições, mas colidiram com o solo. A aeronave pegou fogo
e os quatro a bordo faleceram.
Muitos diriam que o acidente teria sido causado pelas condições meteorológicas
adversas mas esta conclusão seria precipitada e superficial. Se analisarmos com
foco na prevenção, veremos que o mau tempo não pegou o piloto de surpresa nem
jogou a aeronave contra o solo. Na verdade, coube ao piloto a decisão de continuar
o voo e tentar o pouso abaixo dos mínimos. Como não houve sobreviventes,
ninguém nunca vai saber exatamente o porquê da sua decisão. Mas os testemunhos colhidos na investigação dão conta que os passageiros deste aviao iriam de Florianópolis para
o aeroporto de Guarulhos, mas precisavam antes pousar em Lages para apanhar
seus passaportes, pois embarcariam em um voo internacional logo em seguida. Será que a
necessidade dos passageiros afetou de alguma forma a capacidade de julgamento
do piloto a ponto de ele tentar o pouso em condições de alto risco? É provável
que sim. Será que ele percebeu a influência disto? É provável que não.
Outro caso:
um helicóptero decolou do Campo de Marte com destino à Salto (SP). Próximo ao
local de pouso, o piloto efetuou um voo rasante sobre uma rodovia, colidindo o
rotor principal com um barranco na beira da estrada. Três dos sete ocupantes
faleceram e a aeronave ficou irrecuperável. “Um caso típico de indisciplina”,
diriam alguns. Sim, sem dúvida. Entretanto, sob a ótica da prevenção de
acidentes, este rótulo em nada ajuda a melhorar a segurança das operações.
Que tal buscar a origem do acidente nos motivos que levaram o
comandante a decidir fazer um voo a baixa altura desnecessariamente. O ponto
chave para toda PREVENÇÃO de acidentes não é descobrir o QUÊ aconteceu, mas sim identificar o POR QUÊ.
Nos últimos dez anos, o Julgamento de Pilotagem e o Processo Decisório na cabine somados foram fatores contribuintes em mais de 50% dos acidentes aéreos no Brasil. Fonte: CENIPA, 2018 |
Uma análise dos
acidentes aeronáuticos ocorridos no Brasil nos últimos dez anos revela que grande parte dos eventos não teve
nenhuma relação com sistemas mecânicos da aeronave ou com a meteorologia, mas sim
com decisões incorretas tomadas pelos pilotos durante o voo. Na sua
maioria, a aeronave estava em condições normais de operação e não havia nenhum
fator externo determinante para o acidente. Aqueles dois exemplos são
casos clássicos onde o acidente começou dentro da cabeça do piloto,
consequência das decisões que ele tomou.
Para escapar
das armadilhas tradicionais que vitimam dezenas de tripulantes e passageiros,
ano após ano na aviação, um dos passos é se educar sobre situações que podem
influenciar a sua capacidade de julgamento e de tomada de decisão.
FATORES INTERNOS
O comportamento
de um piloto - na verdade o comportamento de qualquer ser humano - pode ser
motivado por fatores externos e internos. Entre os fatores internos observados
com maior frequência nas investigações de acidentes aéreos estão: a ansiedade,
a pressa, o excesso de autoconfiança, a vaidade, o exibicionismo e o sentimento
de invulnerabilidade.
Já percebeu a
frequência de tragédias durante festividades relacionadas com a aviação envolvendo pilotos não qualificados para exibições?
Aniversários de aeroclubes, semana da asa e feiras aéreas são eventos que
contribuem para engordar as estatísticas de acidentes. O exibicionismo, uma
característica que se exacerba durante estas festividades, altera a capacidade
de julgamento de um piloto e o coloca em situação onde ele acaba excedendo seus
limites se não estiver preparado. Mas isto não acontece apenas em
festividades. Quantos e quantos já morreram na frente de pais, esposas,
namoradas, filhos e amigos, realizando manobras que em muito excediam a sua
capacidade pessoal ou a da aeronave que pilotavam? Será que eles acreditavam
que teriam um comportamento absolutamente normal mesmo quando voando nestas
circunstâncias? Um piloto que se ache imune, provavelmente
não está conseguindo identificar como estas situações lhe influenciam e isto aumenta a chance de se tornar mais um número na estatística de acidentes. Por outro lado, ao conseguir perceber os fatores que influenciam seu julgamento, estará
caminhando no sentido de conhecer melhor as suas limitações individuais, comuns
a qualquer ser humano.
Excesso de
autoconfiança é outro fator presente em decisões incorretas tomadas no ambiente
de aviação. Quanto mais você conhece uma operação, quanto mais repeti-la, mais
confiante estará quanto ao seu sucesso. Mas isto também vale quando você
estende os limites ou se desvia das regras. Um resultado positivo reforça na sua
mente a suposta correção daquela decisão. E você repete o comportamento mais e
mais vezes, cada vez mais confiante de que continuará dando certo, embora esteja, na verdade, aumentando sua exposição ao risco. Até um
dia em que algum pequeno fator fora do seu controle vai pegá-lo desprevenido. E ouviremos aquela famosa frase: "mas eu sempre fiz assim". Foi a sua autoconfiança excessiva que gerou complacência - um rebaixamento do seu nível de alerta - e te deixou mais vulnerável.
De novo, o primeiro passo para tomar melhores decisões é reconhecer as situações que
alteram a sua capacidade de julgamento.
Para
qualquer um daqueles fatores internos, como a pressa, a ansiedade, o excesso de autoconfiança ou a vaidade,
é importante reconhecer que existe uma condição alterando o seu desempenho
pessoal e a sua capacidade de avaliação. Quantos pilotos, por exemplo,
pressionam a continuação de um voo sob mau tempo com o pretexto de “preciso
chegar hoje..., o passageiro tem uma reunião importante..., este
doente tem que estar no hospital logo..., se eu não chegar à cidade o patrão vai ficar
chateado”. As estatísticas estão repletas de aviões que nunca
chegaram. A decisão final é do piloto, do comandante da aeronave. Ficamos tão
preocupados em chegar, que aceitamos esticar os limites além dos regulamentos e
das nossas capacidades. Às vezes, supomos uma pressão externa que talvez nem exista. Da
próxima vez que se sentir pressionado, experimente explicar as condições ao seu
passageiro, se for o caso, e descubra se é tão importante assim para ele chegar na hora
marcada considerando as condições. Provavelmente, ele vai optar pela decisão mais
segura. Experimente perguntar a si mesmo se não é a sua vaidade profissional
que te impede de curvar 180 graus e voltar para o aeroporto de origem. Quanto
mais cedo, no planejamento ou durante o voo, você conseguir perceber isto, mais
perto estará de tomar uma decisão melhor. Por outro lado, quanto mais próximo do
seu destino, quanto mais retardar sua decisão, mais pressionado se sentirá
para continuar no caminho arriscado.
Um aspecto muito importante do comportameno humano em aviação é o controle da vaidade. Todos nós cometemos erros. Mas o orgulho profissional conjugado com a tentativa de não deixar o erro aparecer pode ser trágico. Existem inúmeros casos de pilotos que cometeram um erro no planejamento do voo e se viram, por exemplo, com pouco combustível para chegar ao destino com segurança. Mas a eventual decisão de pousar em um campo alternativo mais próximo suscitaria perguntas embaraçosas de serem respondidas. Então, mesmo sabendo do risco, ele prossegue para o destino original. Algumas vezes isso não dá certo e temos aviões pousando forçado a poucas milhas do destino, sofrendo danos graves, provocando sérias lesões nos ocupantes, tudo porque o piloto tentava apenas esconder o seu erro. Vaidade.
Outra armadilha sutil vem do fato do homem usar sua capacidade lógica e de argumentação para se justificar e fazer as coisas que ele deseja, ao invés de optar pelo que é sabidamente o melhor a ser feito. A maioria de nós, quando confrontado com um conflito entre o que sabemos que é o correto e aquilo que gostaríamos de fazer, tende a procurar uma forma de satisfazer os desejos, enquanto se convence de que é a coisa certa a fazer. E isto vale para a nossa vida em geral, não só para a aviação. Você já deve ter passado por uma situação parecida. Aceitou fazer um voo planejando retornar no mesmo dia, pois já tinha compromissos assumidos para o dia seguinte, quaisquer que fossem. Mas, ao tentar voltar, se depara com uma previsão de tempo ruim pela frente. Inicialmente, você pensa: “Eu queria voltar para participar do torneio de tênis neste fim de semana, mas a meteorologia agora está ruim e com formação de gelo na rota, além do que já está escurecendo”. Até aqui, você está listando fatos e está tudo sob controle. O problema é quando você continua com o seguinte raciocínio: “Mas qual o problema? Estou mesmo precisando fazer algumas horas de voo por instrumentos e, se eu for no nível certo, não devo ter problema com gelo. Além do mais, eu nem trouxe roupa para o pernoite”. Isto se chama RACIONALIZAÇÃO. Você gostaria de voltar para casa, sabe que o tempo está ruim, que está cansado e que o melhor seria ficar. Mas... você precisa treinar o voo IFR. Vem bem a calhar. Afinal, você nem está tão cansado assim. Então, "preparem as raquetes porque estou a caminho".
Um aspecto muito importante do comportameno humano em aviação é o controle da vaidade. Todos nós cometemos erros. Mas o orgulho profissional conjugado com a tentativa de não deixar o erro aparecer pode ser trágico. Existem inúmeros casos de pilotos que cometeram um erro no planejamento do voo e se viram, por exemplo, com pouco combustível para chegar ao destino com segurança. Mas a eventual decisão de pousar em um campo alternativo mais próximo suscitaria perguntas embaraçosas de serem respondidas. Então, mesmo sabendo do risco, ele prossegue para o destino original. Algumas vezes isso não dá certo e temos aviões pousando forçado a poucas milhas do destino, sofrendo danos graves, provocando sérias lesões nos ocupantes, tudo porque o piloto tentava apenas esconder o seu erro. Vaidade.
Outra armadilha sutil vem do fato do homem usar sua capacidade lógica e de argumentação para se justificar e fazer as coisas que ele deseja, ao invés de optar pelo que é sabidamente o melhor a ser feito. A maioria de nós, quando confrontado com um conflito entre o que sabemos que é o correto e aquilo que gostaríamos de fazer, tende a procurar uma forma de satisfazer os desejos, enquanto se convence de que é a coisa certa a fazer. E isto vale para a nossa vida em geral, não só para a aviação. Você já deve ter passado por uma situação parecida. Aceitou fazer um voo planejando retornar no mesmo dia, pois já tinha compromissos assumidos para o dia seguinte, quaisquer que fossem. Mas, ao tentar voltar, se depara com uma previsão de tempo ruim pela frente. Inicialmente, você pensa: “Eu queria voltar para participar do torneio de tênis neste fim de semana, mas a meteorologia agora está ruim e com formação de gelo na rota, além do que já está escurecendo”. Até aqui, você está listando fatos e está tudo sob controle. O problema é quando você continua com o seguinte raciocínio: “Mas qual o problema? Estou mesmo precisando fazer algumas horas de voo por instrumentos e, se eu for no nível certo, não devo ter problema com gelo. Além do mais, eu nem trouxe roupa para o pernoite”. Isto se chama RACIONALIZAÇÃO. Você gostaria de voltar para casa, sabe que o tempo está ruim, que está cansado e que o melhor seria ficar. Mas... você precisa treinar o voo IFR. Vem bem a calhar. Afinal, você nem está tão cansado assim. Então, "preparem as raquetes porque estou a caminho".
Normalmente, este processo de racionalização acontece sem
que o piloto se aperceba. Ele simplesmente tem certeza que analisou todos os
pontos e tomou a melhor decisão. Se um dia você se pegar procurando muitos
argumentos para justificar uma decisão, não quer dizer que esteja
necessariamente à beira de um acidente, mas talvez esteja querendo justificar
uma vontade pessoal e tomar uma decisão que não seria a mais indicada para
aquele contexto. O grande problema é que, à medida que o tempo passa, você vai ter mais dificuldade para
identificar estas decisões inadequadas, pois elas terão se tornado comuns, e
você começará e estender os seus próprios limites. Aí, sua capacidade de
avaliar e decidir já estará distorcida e você estará mais vulnerável a decisões inadequadas.
É importante que todos nós tripulantes estejamos atentos. Quando a natureza
básica do homem, seus impulsos e desejos o levarem a uma direção, e seu conhecimento e sua razão o inclinarem para outra, muitas vezes ele vai optar por aquela
que atende seus impulsos, a não ser que ele consiga perceber isto e responda adequadamente.
Isto se chama MATURIDADE. Nos dois acidentes comentados no início, os pilotos
não perceberam e se tornaram vítimas, respectivamente, da pressão autoimposta e do exibicionismo.
A primeira e mais importante barreira para falhas de decisão é a DISCIPLINA no
exercício da atividade. Disciplina pode ser entendida apenas como cumprimento
das normas e regulamentos. Mas também pode ser vista como sua força de vontade
para tomar decisões sensatas quando existirem tentações e pressões para fazer
o contrário. A disciplina é algo a ser exercitado em todo voo. Não adianta andar
à margem dos regulamentos e do bom senso e pensar que nas situações críticas
você será tomado por um arroubo de disciplina e vai tomar a melhor decisão do
mundo. Não vai, pois você condicionou o seu cérebro a pensar de uma certa forma
e ele vai continuar seguindo aquele padrão inseguro. Você mesmo se treinou assim.
Disciplina é fazer o que precisa ser feito, mesmo que voce não tenha vontade de fazê-lo |
A aviação é uma
atividade muito segura mas que, por vezes, torna-se perigosa pelas posturas do
próprio piloto. Tente controlar seus desejos e esteja atento às armadilhas que
a natureza humana põe à sua frente. Seja um piloto melhor do que aqueles que
não conseguiram perceber estes fatores e tomaram decisões tragicamente erradas.
Na próxima vez que entrar na sua aeronave, lembre-se: as condições para um
acidente podem começar dentro da sua própria mente. Ter esta percepção pode salvar a sua vida.
Referência:
Relatório Final de Acidente PT-OQH, 28MAI1995
Relatório Final de Acidente PT-OQH, 28MAI1995
David, bom dia.
ResponderExcluirParabéns pelo conteúdo explanado. Muito bom texto. A segurança de voo, em essência, começa no coração e toma forma e se agiganta no cérebro... Ela pertence ao racional, e neste seu texto vc mostra isso com muita propriedade.
Espero que continue a nos brindar com muito mais reflexões sobre este tema e que possa melhorar a quantidade dos que voam e sobreviveram, pois em um momento de sua vida deixaram que o racional tomasse conta de suas decisões.
Abcs
Cmt Louzada – Prova 16
Excelente artigo!
ResponderExcluirMuito obrigado, Virgínia!
ExcluirA doutrina de segurança deve ser perseguida à exaustão, até que faça parte da massa do sangue.
ResponderExcluirObrigado pelo reforço!
ExcluirParabéns pelo artigo, que em todas as fases da vida de um piloto ele é pertinente, pois quanto mais novo, em horas de vôo, mais forte é a vontade de se exibir, e quanto mais velho, mais é a autoconfiança. Assim, prudência e disciplina sempre.
ResponderExcluirMuito bom comentário, agradeço pela contribuição!
ExcluirExcelente o artigo. Sem sombra de dúvida, uma importante ferramentas de prevenção. Guerra acusada só morre quem quer! Parabéns, David.
ResponderExcluir...avisada...
ExcluirMuito obrigado pelo comentário, Álvaro!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente texto , quando o ego toma conta e a pessoa deixa de aprender é aí que ela cai , humildade sempre e buscando o conhecimento a cada dia , abcs !
ResponderExcluirObrigado, Everton!
ExcluirMuito bom o texto, nos faz pensar em como criamos e mantemos a cultura de segurança no dia-dia das operações.
ResponderExcluirO acidente da Lages pra mim é especial, pois eu conhecia os pilotos e o avião, um turbo-commander. Eu cheguei a voa-lo meses antes do acidente. O cmte do voo foi meu instrutor de voo IFR no aeroclube, era um excelente profissional e uma ótima pessoa. Na época, ninguém entendeu como ele se colocou naquela situação, pois era muito profissional e padronizado. Perdi um grande amigo...
Quando há algum envolvimento com o evento, fica mais dificil aceitar. O melhor que podemos fazer é tirar ensinamentos para não cairmos na mesma armadilha. Obrigado pelo comentário, Roberto.
ExcluirP A R A B É N S ... PELAS EXCELENTES COLOCAÇÕES, ....
ResponderExcluirMuito obrigado, Wilson.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirExcelente artigo!
ResponderExcluirArtigo exposto de forma didática, objetiva sem perder a profundidade que o tema requer. Essencial para quem voa, na minha modesta opinião, por hobby, esporadicamente tendendo a perder a padronização com o tempo. Obrigado por dividir.
ResponderExcluirParabéns pelo texto!
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