Os aviões de transporte estão cada vez mais automatizados. Um moderno jato de passageiros possui sistemas de pilotagem automática, controle automático das manetes dos motores e sistemas computadorizados de gerenciamento de voo. Em um perfil de voo convencional, o piloto atua diretamente nos controles por cerca de 5 minutos, metade na decolagem e metade no pouso. Às vezes, até por menos tempo se a aeronave estiver equipada com sistema de pouso automático. Consequentemente, existe uma preocupação crescente de que os pilotos estejam perdendo as habilidades para reagir manualmente quando há falha dos sistemas automatizados ou erro na programação dos computadores de bordo. Vários eventos têm sugerido esta dependência da automação, como aconteceu com um Boeing 757[1] em 2003.
A aeronave iniciou a descida, preparando-se para uma aproximação de pouso por instrumentos (ILS – Instrument Landing System). O Boeing foi vetorado pelo controle para interceptar o curso do localizador. O avião desacelerou para 220 KIAS e o comandante selecionou o modo de “Aproximação” no Painel de Controle de Modo (MCP – Mode Control Panel) do piloto automático. Na sequência, a aeronave foi liberada para descer até 2.500 ft e o comandante inseriu esta altitude no MCP. Quando o avião interceptou o curso do localizador, estava acima da rampa do ILS. O comandante, entendendo que o piloto automático (AP-Auto Pilot) não teria condição de interceptar a rampa de aproximação, desconectou o sistema e assumiu a pilotagem manual para apressar a descida. Um pouco depois, já abaixo dos 2500 ft de altitude, ele perdeu as indicações de ILS nos instrumentos do seu lado. Com a aeronave acima da rampa, os flaps fora da configuração de pouso e a perda de sinal do ILS sob condição de voo por instrumentos (IMC), a arremetida era o procedimento recomendado. O comandante apertou o botão de arremetida (Go Around), puxou o manche até ajustar a atitude em 20 graus acima do horizonte. O controle automático das manetes (AT-Auto Throttle) engajou, ajustando as manetes para empuxo máximo, e a aeronave começou a subir.
Sequência de ações do Boeing 757 em arremetida sob IMC |
Entretanto, como o procedimento de arremetida fora iniciado muito próximo da altitude que estava selecionada no MCP, o sistema mudou para o modo de captura de altitude e o Diretor de Vôo (FD–Flight Director) indicou uma guiagem para nivelar a 2500 ft. Estando em pilotagem manual, o avião em subida ultrapassou aquela altitude e o FD começou a dar indicação de descida, para voltar à altitude selecionada. Subindo agora com 25 graus cabrados, em configuração de pouso, a velocidade caiu rapidamente. Quando o Boeing atingiu 137 knots, o comandante levou o manche até o batente a picar e reduziu os motores para marcha lenta. O enorme jato assumiu 49 graus de nariz embaixo. A velocidade aumentou rapidamente na descida e, com a proximidade do solo, o alarme do GPWS começou a soar. O co-piloto interferiu e ambos os tripulantes atuaram com força nos comandos a cabrar. Com um fator de carga de 3,6g, o Boeing evitou a colisão no solo por apenas 320ft de altura.
O evento durou menos de 90 segundos desde a perda de controle até a recuperação. Na hora, ninguém entendeu exatamente o que aconteceu ou o porquê, mas os 75 passageiros e sete tripulantes ficaram apavorados com a experiência que, por pouco, não resultou em catástrofe. As análises posteriores mostraram um piloto conflitado entre a atitude que deveria manter e as indicações de guiagem do Flight Director. O comandante declarou que olhava para as telas a sua frente e não reconhecia a condição da aeronave. Inicialmente, no topo da manobra, deduziu que o avião estivesse estolando. Depois, na picada, disse nunca ter visto um indicador de atitude mostrando só “terra” e teve dificuldade em reagir. Ao que tudo indica, o piloto perdera suas habilidades de fazer manualmente um procedimento simples como a arremetida em IMC. Ele não controlou a atitude, a potência nem a configuração da aeronave. Não comandou o recolhimento dos flaps ou do trem de pouso. Seu cheque cruzado dos instrumentos foi lento e suas respostas nos comandos estiveram sempre cerca de 10 segundos atrasadas em relação ao avião. Seu desempenho foi insuficiente, apesar de ser um piloto qualificado e que havia cumprido o treinamento exigido aos pilotos de linha aérea. Entretanto, o mais significativo é que este não foi um caso isolado e nem se restringe a apenas esta tripulação.
Três anos antes, no Golfo Pérsico, um Airbus A-320[2] perdeu o controle durante uma arremetida noturna, também por falta de habilidade do piloto em vôo manual, causando a morte dos 143 ocupantes e a perda total da aeronave. E, em maio de 2006, um outro Airbus 320[3], durante arremetida manual em IMC na Rússia, teve uma perda de controle atribuída a falha de pilotagem e colidiu com o solo, vitimando todos os 113 ocupantes.
Estes eventos juntam-se a vários outros acidentes ocorridos mundo afora, onde a degradação das habilidades de pilotagem na operação de aeronaves automatizadas aparece como fator contribuinte. De fato, as companhias aéreas enfatizam o uso da automação o maior tempo possível, pois o automatismo voa melhor que o ser humano em precisão de manobras e economia de combustível. O lado negativo desta política é produzir um piloto que só sabe voar seguindo o diretor de voo e que raramente olha para as informações sobre atitude e desempenho fornecidas pelos demais instrumentos, perdendo sua habilidade de cheque cruzado. Tudo vai bem se o voo procede normalmente e se os dados que alimentam o piloto automático estão corretos. Infelizmente, a programação no MCP e no FMS são os primeiros itens a serem afetados em situações de elevada carga de trabalho, de distração, de estresse e confusão.
Parece estarmos esquecendo que, independente do nível de automação de uma aeronave, a pilotagem envolve dois parâmetros básicos: ATITUDE e TRAÇÃO. Estes dois fatores definem qualquer regime de voo. Tem sido assim desde o primeiro vôo do mais pesado que o ar. O fato de estarmos voando aviões eletrônicos em nada muda a mecânica básica do voo e a necessidade de controlar atitude e tração. Quando surge um conflito sobre o que o avião esta fazendo em modo automático, só há uma resposta: reverter para a pilotagem básica, fazendo referência a atitude e tração.
Este conceito poderia ter salvo um outro Boeing 757[4], em 1996. O avião acabara de sair de uma lavagem e o pessoal de terra tinha colocado fitas adesivas sobre as tomadas estáticas como proteção durante o serviço. Na inspeção pré-voo, a tripulação não viu as fitas e, quando o jato decolou naquela noite, com 61 passageiros, os pilotos perceberam uma grave incorreção nos instrumentos de altitude e velocidade. Embora fosse viável controlar o avião manualmente, os computadores do piloto automático e de empuxo dos motores não tinham dados para funcionar corretamente. Voando sobre o mar, a noite, a tripulação recebia informações conflitantes, como a ativação do aviso de estol (stick-shaker) simultaneamente com o alarme aural de excesso de velocidade. Não podiam precisar sua velocidade nem altitude, embora o horizonte artificial e os instrumentos dos motores estivessem operacionais. Depois de 28 minutos de intensa confusão na cabine, o Boeing colidiu no mar, a 300 knots, sem deixar sobreviventes. O avião poderia ter sido controlado se os conceitos de atitude e tração fossem postos em prática. Talvez, todos os pilotos devessem memorizar algumas combinações de atitude e tração que garantissem o voo em caso de anormalidade.
Assim como nas falhas de controle de atitude, a falha no controle de tração foi fator crítico em outros eventos. Existe, por exemplo, uma prática de planejar a decolagem inserindo nos computadores de vôo uma informação de temperatura ambiente mais alta que a real. Isto provoca uma redução de empuxo dos motores durante a decolagem, poupa a vida do motor e economiza dinheiro. É um procedimento comum e aprovado na aviação comercial, observados certos parâmetros. Mas os três casos abaixo chamaram a atenção sobre o desempenho dos tripulantes. Em janeiro de 2000, um Airbus A-310[5] decolando com empuxo reduzido teve um alarme de estol logo ao sair do solo. Em março de 2003, devido a um erro no cálculo de peso, o comandante de um Boeing 747[6] executou a rotação cerca de 33 knots abaixo da velocidade prevista, arrastou a cauda no solo e decolou com o stick-shaker ativado. Mais grave ainda, em outubro de 2004, outro Boeing 747[7] não acelerou o suficiente durante a corrida de decolagem, ultrapassou o final da pista e ficou totalmente destruído. Estas três decolagens foram planejadas com empuxo reduzido, os aviões não tiveram o desempenho esperado e, em nenhum dos casos, os pilotos avançaram as manetes para obter empuxo máximo. Nos três casos, embora o ajuste inicial fosse inadequado, havia potência disponível para os aviões voarem. Por que, então, os pilotos não avançaram as manetes? Seria o caso de submissão extrema aos manuais ou simplesmente uma falha na aplicação de conceitos básicos de pilotagem.
Outro exemplo típico de perda das habilidades básicas envolveu um Boeing 777 [8] em procedimento de arremetida no solo. A aeronave realizava uma aproximação que resultou em uma longa flutuação no arredondamento para o pouso. Logo após o toque no solo, ao receber o aviso sonoro de "Long Landing", a tripulação optou pela arremetida. O relatório preliminar de investigação não foi claro sobre os procedimentos na cabine, mas supostamente o piloto apertou o botão que ativa o perfil de arremetida, o Diretor de Voo iniciou a guiagem para cima e o piloto manualmente comandou a atitude de subida. Assim que o avião deixou o solo, os flaps e trem de pouso foram recolhidos. Mas aparentemente as manetes não foram avançadas para potência máxima, que é uma tarefa básica de qualquer arremetida, e a aeronave, sem velocidade ou tração suficiente, retornou ao solo sofrendo danos graves. O detalhe é que, neste tipo de aparelho, o sistema de controle de manetes é desativado automaticamente depois que se toca o solo. Acostumado à atuação sempre presente do Auto-Throttle, é provavel que não tenha havido ação dos tripulantes em avançar as manetes para completar a arremetida.
Outro exemplo típico de perda das habilidades básicas envolveu um Boeing 777 [8] em procedimento de arremetida no solo. A aeronave realizava uma aproximação que resultou em uma longa flutuação no arredondamento para o pouso. Logo após o toque no solo, ao receber o aviso sonoro de "Long Landing", a tripulação optou pela arremetida. O relatório preliminar de investigação não foi claro sobre os procedimentos na cabine, mas supostamente o piloto apertou o botão que ativa o perfil de arremetida, o Diretor de Voo iniciou a guiagem para cima e o piloto manualmente comandou a atitude de subida. Assim que o avião deixou o solo, os flaps e trem de pouso foram recolhidos. Mas aparentemente as manetes não foram avançadas para potência máxima, que é uma tarefa básica de qualquer arremetida, e a aeronave, sem velocidade ou tração suficiente, retornou ao solo sofrendo danos graves. O detalhe é que, neste tipo de aparelho, o sistema de controle de manetes é desativado automaticamente depois que se toca o solo. Acostumado à atuação sempre presente do Auto-Throttle, é provavel que não tenha havido ação dos tripulantes em avançar as manetes para completar a arremetida.
Uma das hipótese para este acidente com um Boeing 777 seria o piloto ter iniciado a arremetida no solo sem avançar as manetes de empuxo dos motores. |
O que deve ficar claro neste universo de eventos é que o ser humano desenvolve destreza naquilo que exercita, mas também esquece o que não pratica. O cenário de operação de aeronaves automatizadas está induzindo à degradação das habilidades de pilotagem manual, que serão requeridas, muitas vezes, em situação de emergência. As soluções passam pelo treinamento, pelas políticas das companhias e pela fiscalização das autoridades aeronáuticas. O treinamento hoje tem forte ênfase na automação, talvez por assumir que a pilotagem básica é garantida pela experiência anterior do tripulante. Errado. O treinamento em linha aérea deve passar obrigatoriamente pelo voo manual e falhas induzidas pela automação. Os acidentes estão constantemente nos mostrando esta necessidade. Como solução adicional, algumas empresas orientam para que os pilotos exercitem aproximações em três diferentes níveis de automação. Na maior parte do tempo, devem utilizar os sistemas automatizados por questões de economia e precisão, mas uma pequena porcentagem das aproximações deve ser feita em pilotagem manual, com e sem a guiagem do Diretor de Voo. Mas vale lembrar que voo manual seguindo o FD e com o AT engajado não exercita o controle de Atitude, nem o de Tração e muito menos o Cheque Cruzado, habilidades primordiais à pilotagem básica
Estudo após estudo, conclui-se sobre a necessidade de praticarmos o básico, pois os mesmos fatores causais tem emergido a cada investigação de acidente. Precisamos incentivar a manutenção das habilidades de voo que dominávamos quando tiramos nossas licenças de pilotos. A automação é uma realidade sem volta e com inestimáveis avanços para a segurança e eficiência da aviação, mas que também pode gerar confusão pela sua complexidade. Quando isto acontecer, a recomendação é baixar o nivel de automação ou reverter para a pilotagem manual e retomar controle da aeronave. E esta solução passa necessariamente pelas habilidades de pilotagem básica.
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Riscos da Automação envolvendo sistemas de controle de voo Fly-by-Wire serão abordados em um próximo artigo específico.
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[2] Relatório Acidente Gulf Air Airbus A-320, 23AGO2000;
[3] Aviation Safety Network, Armavia Airbus A-320, 03 MAI 2006;
[5] Relatório Kenya Airways, Airbus A-310, 30 JAN 2000
[7] Relatório MK Airlines, Boeing 747, 14 OUT 2004
[8] Relatório Preliminar Emirates Airlines, Boeing 777, 03AGO2016
[8] Relatório Preliminar Emirates Airlines, Boeing 777, 03AGO2016
QUALQUER PAPA TANGO.FAZ TUDO SOZINHO.QUANDO PRECISAR DO PILOTO.ELE NÃO VAI TER TEMPO PRA VOLTAR AO REAL.APENAS NOS JORNAIS SITARAO SUA MÁXIMA CULPA.JAMAIS PODEMOS ENTREGAR OS COMANDO AOS COMPUTADORES.
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