9 de fevereiro de 2020

4C's do I-IMC




 A melhor atitude é manter-se longe de condições que restringem a visibilidade, mas alguns passos vitais podem evitar uma tragédia

Um helicóptero R-44 decolou de Osasco com destino a São Lourenço da Serra (SP), transportando três passageiros para uma cerimônia de casamento. No deslocamento, as condições de visibilidade começaram a se deteriorar. Já próximo ao destino, a aeronave entrou inadvertidamente em condições de voo por instrumentos. Pouco depois de perder a visibilidade externa, o aparelho atingiu uma atitude anormal (cerca de 140º de inclinação a direita, 30º de nariz para baixo) e houve perda de controle por parte do piloto. A aeronave colidiu violentamente contra o solo, quase na vertical, provocando a morte dos quatro ocupantes, incluindo a noiva da cerimônia de casamento.
R44 acidentado em São Lourenço, com indicador de atitude mostrando a aeronave com 140º de inclinação, e os destroços: quatro vítimas fatais.

          Acidentes com helicópteros por entrada inadvertida em condições de voo por instrumento (I-IMC - Inadvertent IMC) acontecem com uma assustadora frequência. Talvez acreditando na versatilidade e manobrabilidade do aparelho, pilotos forcem o voo em condições meteorológicas marginais, confiando que serão capazes de contornar qualquer dificuldade.

Porém, alguns parecem esquecer que o helicóptero é uma aeronave inerentemente instável, apresentando intensas razões de rolamento e de arfagem, muito mais do que um avião. O próprio fabricante do R-44 acidentado sempre alertava os operadores que “a perda de referências externas, mesmo que momentaneamente, pode resultar em desorientação espacial, atuação errática nos comandos de voo e um acidente por perda de controle. Este tipo de situação ocorre normalmente quando o piloto tenta voar em área de restrição de visibilidade. Ele perde controle ao tentar curvar para retomar a visibilidade, mas é incapaz de completar a curva sem referências visuais. O piloto deve tomar uma ação corretiva ANTES de perder visibilidade e, para isso, depende de fazer um bom julgamento e ter a força de vontade para tomar a decisão correta”.
           
             No recente evento com um SK-76, na Califórnia, o NTSB divulgou preliminarmente que a aeronave estava em atitude de subida em IMC, iniciou uma curva a esquerda e, logo em seguida, estabeleceu uma trajetória com razão de descida de mais de 4.000 pés por minuto ainda em IMC. Existe uma grande probabilidade de uma desorientação espacial ter causado este acidente. O NTSB também informou que a aeronave estava a apenas 100 pés de sair visual no topo da camada.

Investigadores percorrem o local do acidente com um helicóptero S-76, que matou nove pessoas, incluido o jogador de basquetebol Kobe Bryant, em 26 de janeiro de 2020.

          Devemos entender que o I-IMC é causado na maioria das vezes pelo piloto, por uma avaliação deficiente das condições e um erro na tomada de decisão. Assim, a primeira e mais importante medida para evitar I-IMC e sofrer as trágicas consequências de uma desorientação espacial é manter-se afastado de áreas com restrição de visibilidade, obedecendo aos parâmetros e os limites mínimos do voo visual.
            
          Entretanto, sob o foco de Fatores Humanos em Segurança de Voo, onde sempre consideramos que o ser humano comete erros durante a operação da aeronave, vem a pergunta inevitável: e se o piloto entrar inadvertidamente em condições de voo por instrumento? O que ele deve fazer? Pilotos que tem um plano para lidar com situações de emergência geralmente se saem melhor do que aqueles que não tem, daí o objetivo deste texto.

As ações logo após a entrada em IMC são essenciais para o desfecho da situação. Pilotos treinados e proficientes, que possuam um plano de ação no caso de entrada em IMC, tem mais chance de evitar uma tragédia por desorientação espacial. Algumas escolas de voo ensinam um método que padroniza quatro ações vitais - controlar, cabrar, curvar e comunicar.


CONTROLE
           
          A primeira prioridade é controlar, ou preocupar-se apenas em voar a aeronave, mantendo-a sob voo controlado e estabilizado. Esta deve ser a prioridade na maioria das emergências em aviação e no caso de I-IMC não é diferente. No momento da entrada em IMC pode ocorrer uma desorientação espacial. A grande maioria dos eventos não acontece porque o helicóptero continou voando e colidiu controladamente contra o terreno: acontece por desorientação espacial e perda do controle em voo.

            Desorientação espacial é uma condição muito séria. Uma circular americana sobre o tema (FAA AC 60-4) informava que, durante um período de cinco anos, aconteceram quase 500 acidentes por desorientação espacial nos Estados Unidos. Tragicamente, tais acidentes resultaram em fatalidade em 90% dos casos. Testes realizados com pilotos qualificados em voo por instrumentos indicaram que pode levar até 35 segundos para se alcançar completo controle da aeronave após a perda de referências visuais com a superfície. Porém, estes testes foram realizados com aeronaves de asa fixa, muito mais estáveis em voo do que os helicópteros. Restabelecer o controle do helicóptero nestas circunstancias pode levar mais de tempo e ser mais difícil.

            Os pilotos em I-IMC devem, então, dirigir toda a sua atenção para o painel e começar um cheque cruzado dos instrumentos. Tentar continuar o voo VFR em condições por instrumentos é muito perigoso se o piloto resistir em aceitar as informações que lhe estão sendo passadas pelos instrumentos. Nunca será demais enfatizar a importância de se manter o controle da aeronave através dos instrumentos de voo e não pelas suas sensações físicas.
Nos primeiros momentos da entrada inadvertida em IMC, o piloto deve se concentrar em controlar a aeronave, ajustando a ATITUDE e a POTÊNCIA do motor

            O controle da aeronave deve incluir manutenção da Atitude pelo horizonte artificial, estabelecimento de um valor de torque/potência conhecido, definição da proa e o monitoramento da velocidade indicada. O comportamento de uma aeronave em voo por instrumentos depende sempre de dois parâmetros controlados pelo piloto: ATITUDE e POTÊNCIA (pressão de admissão ou torque). Estabelecendo estes parâmetros, a aeronave estará controlada e com uma trajetória definida. A partir daí, pequenos ajustes devem ser feitos para se alcançar uma nova condição desejada. Olho no indicador de atitude e na potência em uso. Depois de estabilizado, faça os ajustes necessários. Cuidado com a propensão a iniciar logo uma curva, antes de ter a aeronave sob controle e estabilizada, por causa do perigo de uma forte desorientação espacial.


COLETIVO

          Tão logo a aeronave esteja sob controle por instrumentos, o piloto deve atuar no COLETIVO para imprimir uma trajetória ascendente. Geralmente, a entrada inadvertida em IMC acontece à baixa altura, aonde a colisão com o solo é uma ameaça. O piloto deve comandar uma subida controlada para uma altitude onde não haja risco de colisão com obstáculos. Um lembrete importante: cuidado para não puxar o manche cíclico com o intuito de subir. Esta ação provocaria uma diminuição da velocidade indicada e agravaria o controle do aparelho. O intuito aqui é atuar no coletivo para estabelecer uma razão de subida controlada, sem provocar redução de velocidade.
           

CURVA

Com a aeronave em subida controlada, o piloto deve escolher curvar cuidadosamente para uma proa desejada, se souber que existem obstruções a sua frente ou se acredita que o tempo pode estar melhor em outra direção. Durante a manobra, sempre deve estar se referenciando ao indicador de atitude no painel. O voo agora é por instrumentos e o piloto não deve tirar os olhos do indicador de atitude, manobrando cuidadosamente.

           
COMUNICAÇÃO

Após o piloto estar com o controle da aeronave, ter iniciado a subida e estiver no curso desejado, ai sim deve se comunicar com o ATC, informando o IMC inadvertido, declarando suas intenções e solicitando alguma ajuda, se necessário. Quando o piloto notifica que está em IMC inadvertido, o controlador deve perguntar se ele é qualificado e se é capaz de continuar o voo IFR. Se o piloto responder que sim, o controlador deve instruí-lo a preencher um plano IFR em voo e lhe dar uma autorização.

            Se o piloto diz que não é qualificado ou que não poderá continuar o voo, o controlador deve informar ao piloto as altitudes mínimas para evitar a colisão com obstáculos no setor. Se a aeronave ainda estiver abaixo destas altitudes, fornecer uma radial de subida para altitude de segurança. A seguir deve-se vetorar a aeronave para uma área que esteja operando VFR.

          Mais uma vez, estes são procedimentos de contingência. Não espere que surjam em sua mente apenas porque voce leu este artigo. Como qualquer outra condição de emergência em aviação, os procedimentos precisam ser exercitados, pelo menos mentalmente, para estarem prontos para serem aplicados quando o imprevisto acontecer. E se o piloto não está qualificado para o voo por instrumentos, será um passo na direção de um desastre fatal.

Os 4C do I-IMC

Sempre devemos lembrar que o primeiro passo para evitar a entrada inadvertida em IMC é manter-se afastado de formações meteorológicas que reduzem a visibilidade.  Deveria ser obrigação de todas as escolas de pilotagem enfatizar isso. O piloto deve usar a sua maturidade profissional para não voar em situações marginais de segurança. Todavia, caso um imprevisto aconteça, os quatro procedimentos listados podem livrá-lo de um acidente fatal.


Referências:
- Every Helicopter Pilot must Be Prepared for Inadvertent Entry into Instrument Meteorological Condition, de Joel Harris
- Relatório Final Acidente PR-TUN, Cenipa
FAA AC 60-4

3 de fevereiro de 2020

IMC INADVERTIDO EM HELICÓPTERO

Um helicóptero bimotor S-76, com cinco pessoas a bordo, decola de um heliponto em Cubatão, litoral de São Paulo, com destino ao aeroporto de Navegantes (SC). O plano de voo era visual, direto sobre o mar, mantendo 4.500 pés de altitude. Ao aproximar-se do litoral catarinense, a tripulação informou estar descendo para 500 pés. A cinco minutos de Navegantes, reportou ao controle de tráfego estar subindo para 1000 pés para se manter em condições visuais. Em meio ao denso nevoeiro que predominava na região, testemunhas afirmaram ter ouvido o som do helicóptero e uma forte explosão. O aparelho colidiu com uma elevação no terreno a 700 pés de altitude. Os cinco ocupantes faleceram no local e a aeronave ficou completamente destruída.
Estatísticas de acidentes demonstram que este cenário tem acontecido com uma frequência trágica. Pilotos operando oficialmente sob regras de voo visual (VFR) continuam a colidir com obstáculos no terreno por falta de visibilidade para manobrar ou porque a entrada em condições de voo por instrumentos (IMC) induziu à desorientação espacial e à perda de controle em voo. Existem várias razões que explicariam porque um piloto de helicóptero em voo VFR prossegue sob condições marginais, apesar de depender totalmente de referências no terreno para navegar e manter o controle da aeronave. Algumas destas razões são de ordem operacional, outras de ordem pessoal.
Primeiro, há que se considerar que helicópteros operam em condições bem diferentes dos aviões. Não cruzam no FL 350, nem a Mach 0.80. Helicópteros voam na maior parte do tempo a baixa altura, perto do terreno, decolando de áreas sem apoio de solo, sem informação meteorológica ou de tráfego aéreo. Pousam no topo de edifícios, em helipontos de hospitais, em plataformas de petróleo ou no meio de clareiras. Muitos voos ocorrem com apenas um piloto. Sua grande vantagem sobre os aviões está na possibilidade de atingir destinos aonde o avião não chega. Isto acaba gerando uma pressão para chegar a qualquer custo. Em outros casos, esperam-se respostas rápidas, como nas tarefas de transporte aeromédico. Um estudo sobre desempenho de tripulações concluiu que a possibilidade de erro humano é multiplicada muitas vezes quando existe pressão de tempo. Estas exigências frequentemente resultam em esforços para atingir resultados e acabam levando a operações sob condições marginais de meteorologia. O piloto nem sempre está preparado internamente para lidar com este contexto e veremos isso mais a frente.
Sob o foco operacional, o nível de TREINAMENTO é um dos fatores mais presentes nos acidentes envolvendo mau tempo. Certa vez, um helicóptero AS-332 decolou de Curitiba para o Rio de Janeiro com plano visual, embora a meteorologia fosse marginal para o voo VFR. Logo no início da rota, cruzando uma região montanhosa, as condições de teto e visibilidade se degradaram a tal ponto que a aeronave teve que reduzir demasiadamente a velocidade. Sem potência para voar tão lento fora do efeito solo, o aparelho iniciou um afundamento descontrolado até colidir violentamente com o terreno, sofrendo danos graves. Tanto a tripulação quanto o helicóptero estavam qualificados para o voo IFR, mas a opção tinha sido pelo plano visual. Este comportamento tem sido mais corriqueiro do que se imagina. A realidade é que, para muitos pilotos de helicóptero, o voo por instrumentos não é praticado a ponto de manter a proficiência e isso afeta a autoconfiança. Embora as empresas ou proprietários de aeronaves geralmente exijam uma qualificação IFR na hora da contratação, por causa dos perfis de voo em que o helicóptero é usado com mais frequência, decolando de lugares sem apoio e voando VMC, haverá menor possibilidade de o piloto manter o treinamento. Por isso, pode acontecer de o comandante optar por não fazer um plano IFR por absoluta falta de confiança na sua habilidade de controlar o helicóptero sem referências externas.
 A VAIDADE profissional é outro fator que induz à decisão de continuar o voo visual sob condições degradadas. Quando decola, o piloto supostamente teria verificado e estaria ciente das condições meteorológicas ao longo da rota e destino. O retorno poderia gerar críticas de falha no planejamento, do tipo “você não checou o tempo antes de decolar?”. As pressões externas, sejam dos passageiros ou outros envolvidos com a operação, também se somam àquelas pressões internas do próprio tripulante para completar o voo com o mínimo possível de alterações. É muito comum o piloto acreditar na sua capacidade de contornar a situação e de conseguir chegar ao destino. Um relatório de acidente, entretanto, já concluiu certa vez: “os pilotos, particularmente aqueles mais experientes, de maneira geral tentam terminar o voo da forma como foi planejado, agradando os passageiros, cumprindo horários e demonstrando sua capacidade profissional. Mas esta atitude pode trazer um efeito adverso para a segurança de voo, induzindo a constantes desvios de procedimento e reforçando avaliações incorretas, produzindo práticas perigosas que podem conduzir a uma tragédia”. Ou seja, o piloto passa a se acostumar com condições marginais, aceitando gradativamente situações cada vez mais críticas e, pior, sempre recebe um reforço positivo quando atinge o resultado esperado.
Acidentes por entrada inadvertida em IMC são normalmente catastróficos e letais
Os acidentes relacionados com restrição de visibilidade costumam ser catastróficos. Ao mesmo tempo, são os mais facilmente evitáveis, pois a decisão repousa nas mãos do tripulante. Quando defrontado com uma degradação das condições meteorológicas, o piloto tem várias opções: continuar voando com velocidade reduzida, retornar, fazer um pouso de precaução ou subir em IMC e modificar o seu plano de voo para IFR.
A opção de continuar o voo visual é escolhida pelo tripulante na maioria das vezes por se adequar aos objetivos que ele definiu quando a aeronave decolou. Entretanto, é a escolha que tem trazido as piores consequências operacionais, variando desde colisões com fios até impactos violentos contra o terreno resultando em perda total. Outra opção, a transição para o voo IMC, se não tiver sido previamente planejada, aumenta excessivamente a carga de trabalho, mas é uma alternativa viável à uma colisão contra o solo. Para que esta escolha seja exercida com segurança, é essencial manter a proficiência no voo por instrumentos, através de treinamento continuado. Já o pouso de precaução ou o retorno são ações facilmente executáveis.
Estas duas últimas alternativas preservam a iniciativa individual e o completo controle sobre a situação, embora possam gerar pequenos inconvenientes, como atrasos na chegada ao destino e eventuais críticas por parte dos colegas ou passageiros. Apesar disto, o piloto consciencioso deve se colocar acima destas recriminações. Preocupar-se com isto demonstraria apenas uma falta de confiança na sua capacidade de avaliar uma situação e tomar uma decisão. No ambiente dinâmico do voo, nenhuma decisão será perfeita, mas ninguém fora da cabine, na tranquilidade de uma sala, tem o direito de criticar ações tomadas em favor da segurança do voo. O piloto deve ter consciência que considerações posteriores ao pouso não podem ser mais importantes que a segurança da sua aeronave e dos passageiros.
Este aspecto tem sido frequentemente esquecido, mas, quando se verificam os diferentes efeitos entre um comportamento cauteloso ou um mais arrojado, fica fácil de escolher. Decisões em favor da segurança, que eventualmente provoquem consequências menores, como um atraso no voo, podem apenas gerar críticas por parte de pessoas menos preparadas profissionalmente. Mas seus comentários duram pouco e são logo esquecidos. Por outro lado, decisões que comprometem princípios de segurança, seja por influência de pressões externas ou de fatores internos do próprio piloto, podem gerar tragédias que serão lembradas e exploradas por toda uma carreira, isso se restar um carreira. O voo IMC inadvertido pode ser uma das condições mais demandantes, desorientadoras e perigosas que um piloto pode experimentar. A tentativa de voar visual em condições marginais é uma das situações que tem feito inúmeras vítimas na operação de helicópteros. Cabe tão somente ao piloto esta decisão crucial.


Referências
- Helicopter Safety Bulletin, Flight Safety Foundation
- IMC, Pilot Error cited in Rotorcraft Mishaps, Bill Wagstaff
- Relatórios Finais de Acidente, Cenipa

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