Na noite de 29 de março de 2001, as 19:02h local, um Gulfstream III, operado pela Avjet Corporation, colidiu com o terreno cerca de 800 metros antes da pista 15 do aeroporto de Aspen, Colorado (EUA). Os três tripulantes e todos os 15 passageiros sofreram lesões fatais. A aeronave ficou destruída.
A aproximação que culminou com o acidente foi resultado de uma série de erros iniciados bem antes da decolagem. Aspen, localizado em região montanhosa, não é um aeroporto fácil para tentar um pouso em condições meteorológicas marginais, principalmente com uma tripulação que não está padronizada. E esta tripulação não estava. Não houve um briefing da descida IFR. Depois, o comandante permitiu que um passageiro viesse a ocupar o assento extra na cabine de pilotagem (jump-seat). Durante o perfil de aproximação, a tripulação cruzou diversos fixos abaixo das altitudes especificadas e o copiloto deixou de fazer os callouts previstos. Desceram abaixo da MDA, embora as manobras erráticas da aeronave e os comentários no cockpit indicassem que nenhum dos pilotos havia estabelecido contato visual com a pista. Quando a aeronave estava a 1,4 milha da cabeceira, o comandante pergunta “onde está?”, mas não abandona o procedimento, mesmo sem ter identificado a pista. Ele prossegue voando abaixo da MDA, mas o copiloto não reage. Os alarmes de GPWS indicam repetidamente a proximidade com o terreno. O controlador da torre vê a aeronave a baixa altura e a direita do alinhamento da pista, fazendo uma curva acentuada a esquerda, provavelmente tentando interceptar a aproximação final. O jato atinge o solo em uma inclinação lateral de 50 graus e explode.
Gulfstream GIII acidentado em Aspen, EUA |
O AMBIENTE DA AVIAÇÃO EXECUTIVA
Como muitos outros, este acidente revelou-se como mais uma
tragédia clássica da aviação executiva, onde uma série de fatores contribuiu
para colapso nas decisões dos tripulantes. A aviação de transporte executivo,
como qualquer outra área empresarial, é um negócio com características
próprias. Quando mal administrado, seja sob o foco técnico, seja gerencial,
conduz à condições que podem comprometer seriamente a segurança de voo.
Primeiro, há que se conhecer bem o cenário deste tipo de operação. Uma rápida
comparação com as grandes empresas de transporte comercial evidencia logo
algumas diferenças. A aviação de transporte regular opera em um ambiente
organizado e previsível. Nela existe uma programação e rotas pré-estabelecidas.
Os tripulantes sabem, com semanas de antecedência, qual será sua escala, para
onde estarão voando e qual será a jornada de trabalho. Na aviação executiva,
por outro lado, a operação é por demanda, em um ambiente altamente dinâmico e
mutável. Primeiro, porque as aeronaves estão à disposição da agenda dos seus
clientes, o que impõe uma série de incertezas na programação, começando com o
horário real de decolagem. As longas e imprevisíveis jornadas de trabalho geram
fadiga nos tripulantes, deixando-os muito mais vulneráveis a erros
operacionais.
Os tripulantes da executiva têm que
lidar também com toda a burocracia de despacho e planejamento do voo, incluindo
mudanças de última hora, que podem variar desde aspectos relativamente simples,
como o número de passageiros, até uma modificação do destino final pelo cliente já durante o voo. Quando isto ocorre, todo o planejamento anterior tem que ser
abandonado. A tripulação precisa rapidamente se adaptar às novas exigências,
estimar sua capacidade de atingir o novo destino, escolher campos de
alternativa diferentes e recalcular o desempenho para operação na pista
desejada. Mudanças de última hora, tão comuns na aviação executiva, dificultam
um trabalho de planejamento abrangente e podem significar um aumento expressivo
do risco, ainda mais quando conjugado com operação em aeródromos menores.
Muitos clientes fretam aeronaves executivas porque as condições da pista não
permitiriam a operação de uma aeronave de transporte regular. Muitas vezes, são
pistas curtas e com limitações na infraestrutura de apoio à navegação, balizadas
apenas por procedimentos de não-precisão ou, até mesmo, por procedimento
nenhum. Foi neste cenário que um helicóptero Agusta A-109 tentou, indevidamente,
fazer uma aproximação noturna na região de Maresias, no litoral paulista,
lançando mão de recursos improvisados para pousar sob condições meteorológicas
adversas e acabou colidindo no mar. O questionamento mais frequente depois de acidentes deste tipo é:
por que um piloto da aviação executiva tenta, como ocorreu em Aspen ou em
Maresias, realizar procedimentos que são reconhecidamente perigosos?
Helicóptero Agusta A109 após acidente na praia de Maresias, SP |
Pressão para voar e completar o voo
talvez seja a resposta, um aspecto peculiar da aviação executiva que requer
especial atenção, seja dos tripulantes, seja dos administradores da empresa. É
um fato bem conhecido que pilotos sentem uma intensa compulsão no sentido de
iniciar o voo e, depois de iniciado, chegar até o destino previsto. Existem
muitos fatores que conspiram para induzir a esta atitude. Para um piloto novato
que ainda está acumulando horas, cada minuto no ar o aproxima de atingir os
requisitos para conseguir emprego na linha aérea. Para o piloto que recebe por
hora, um voo recusado representa menos dinheiro no final do mês. Para o piloto
executivo, existe a possibilidade de desagradar o cliente e perder o negócio,
ou colocar em risco o próprio emprego. E, para todos os pilotos, ainda há uma
sutil pressão interna, o orgulho de conseguir fazer algo quando outros não
conseguem, talvez combinado com um falso sentimento de invulnerabilidade, que
pode conduzir a comportamentos de alto risco.
Por causa de tantos fatores que podem
levar um piloto a quebrar a regras e assumir riscos desnecessários, por causa
da pressão do cliente, real ou percebida, é essencial que a alta administração
de uma empresa de aviação executiva desenvolva e implemente uma forte cultura
interna que valorize o cumprimento das regras, reduzindo o risco tanto quanto
possível. É desalentador que em algumas companhias haja, na realidade, uma
significativa pressão da administração no sentido de se desviar das normas,
completando o voo e satisfazendo o cliente. Não é difícil descobrir por que
isto acontece.
Toda companhia de aviação está no
negócio para maximizar o lucro, e pode parecer que as normas frequentemente
conspiram contra este objetivo. Em um mercado competitivo como de aviação,
acaba sendo sedutor desviar-se das regras um pouco, ou mesmo totalmente, no
interesse de agradar o cliente, de bater a concorrência e tornar seu negócio
mais lucrativo. O que poucos percebem é que estas atitudes passam a influir o
comportamento de muitos na organização. Chega a um ponto onde um tripulante que segue as regras e se proclame contra uma situação de risco, pode ser
encarado como um “reclamão” ou um “antiaéreo” e ganhar a reputação de alguém
que “não veste a camisa da empresa”. Por outro lado, um funcionário que desvia
das normas para atingir os resultados será visto como “colaborador proativo”, e
acabará sendo favorecido pela administração. Com o tempo, os “reclamões” ficam
pelo caminho, enquanto os que “vestem a camisa” sobem os degraus na hierarquia.
Finalmente, a pessoa que acredita em quebrar as regras assume a gerência de
operações e produz mais pressão em cima de quem interrompe um voo por causa de
meteorologia, de desempenho marginal da aeronave, de manutenção ou jornada de trabalho. Para piorar
ainda mais as coisas, os alto-administradores da empresa talvez conheçam pouco
sobre os riscos da aviação e simplesmente aceitam a visão distorcida do “eficiente”
gerente de operações que sempre cumpre a missão. A pressão sobre o tripulante
neste ambiente doentio pode ser intensa. Um diretor de operações, certa vez,
jogou uma pilha de currículos sobre a mesa de um piloto que havia interrompido
um voo alegando motivos de segurança. A mensagem era clara: “tem bastante gente aí
fora que pode ocupar o seu lugar”. Empresas conduzidas desta forma estão apenas
preparando o terreno para o próximo acidente, que poderá acontecer bem mais
cedo que se imagina.
A aviação executiva tem características
bem peculiares. Pode apresentar um alto nível de segurança, assim como
pode estar muito vulnerável, se mal administrada. As ferramentas para
desenvolvimento da segurança de voo passam pelo treinamento de tripulantes, pela
padronização operacional, pela identificação de perigos e administração dos
riscos e, finalmente, pelo estímulo a uma cultura que valorize fazer o que é
certo. Se eventuais desvios permitem completar o voo e gerar lucro por algum
tempo, cedo ou tarde conduzirão a acidentes, representando um sério revés para
o desenvolvimento global da aviação executiva.
Muito bom David!! Vc sempre foi inspirado e vem sendo inspiracao nas tematicas que faz seus textos parabens!! Mais um para meus alunos debaterem!!
ResponderExcluirMuito obrigado pelo seu constante apoio e estímulo, Conceição!
ExcluirParabéns pela precisa exposição do ambiente operacional regente na aviação geral.
ResponderExcluirMais preciso sobre o que acontece com grande parte dos tripulantes da aviação executiva impossível! Parabéns.
ResponderExcluirNo dia que as seguradoras deixarem de cobrir os custos destas tragédias baseadas em imprudência as negligências com a segurança do vôo acaba ou ao menos diminui consideravelmente.
ResponderExcluirParabéns David por compartilhar essas informações e seus conhecimentos. Você nos inspira muito!! Bom ter alguém como você tão capacitado e que nos ensina tanto. Obrigada!!
ResponderExcluirMuito obrigado, Claudia!
ExcluirCaro Cmte David, estou maravilhado com o conteúdo tão rico dos seus artigos e me lamentando não tê-lo descoberto antes. Sou um eterno apaixonado por Fatores Humanos, Gerenciamento de Risco e suas influências nos Processos de Decisão. Tenho tentado me dedicar mais profundamente na exploração desses temas e na possibilidade de utilização dos mesmos no entendimento do que chamamos da “dinâmica do erro” e suas possíveis causas. Seu texto traz considerações tão importantes que vão tão de encontro ao que tenho estudado, onde muito mais do que apenas apontar “o que” aconteceu, se dedica a uma pergunta mais importante ainda; “porque” o erro de operação ou de decisão aconteceu. Um trabalho muito bacana da sua parte que eu tenho tido o prazer de aprender, me ajudando a entender melhor as diferenças operacionais mais marcantes entre a aviação comercial e a aviação executiva. Espero poder caminhar nesse aprendizado e em algum momento no futuro, criar algum tipo de plataforma de ajuda à nossa comunidade de aviadores. Meu honesto e humilde parabéns à vce e muito obrigado por estar me ajudando e ajudando também tantos outros, Gde abraço
ResponderExcluirNicolau
nicolaumb@yahoo.com.br
Prezado Nicolau, peço desculpas pela demora na resposta. Agradeço imensamente pelo seu feedback e seus comentários, pois me motivam a continuar escrevendo e divulgando conteúdo de segurança de voo. Muito obrigado!
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