O pequeno Cessna 152 subia lentamente, procurando
atingir os 2.000ft de altura para começar as manobras de treinamento. A maior
preocupação do aluno iniciante era manter a velocidade correta. Foi quando o
motor parou de funcionar. O silêncio inesperado e repentino foi interrompido
apenas pela voz firme e confiante do instrutor: “Está comigo!”. Tendo assumido
os controles e realizado os procedimentos previstos na cabine, sem resultado, o instrutor
percebe que a última opção é um pouso forçado. A aeronave se estabiliza no
planeio enquanto o instrutor procura o local mais adequado para o pouso
Com menos que dez
horas de voo totais na sua caderneta, o aluno apenas observa os acontecimentos,
mas tem certeza que o “Ás” sentado no outro assento sabe sobre aquela pequena
pista de terra que está ficando para trás, a esquerda deles. Logicamente deve haver alguma razão
para o instrutor ter rejeitado esta opção. O aluno ainda pensa em perguntar,
mas acaba se calando para não perturbar a concentração do instrutor, que está ocupado e totalmente absorto em salvar suas vidas. O Cessninha termina se
acidentando em um campo arado, a menos de duas milhas da pista que o aluno
tinha visto. Não houve danos pessoais, mas a aeronave sofreu avarias graves. Ao
saírem do avião, ilesos, o aluno comenta:
- Poxa vida, que susto, hein! Ainda bem que saímos inteiros!
- Rapaz, é pena que não tinha um lugar melhor. O avião não aguentou o
tranco – explica o instrutor.
- Bem, eu não entendi porque viemos para cá. Eu teria pousado naquela
pistinha ali atrás.
- Que pista? - pergunta o surpreso instrutor.
- Aquela que estava bem debaixo de nós quando o motor parou.
- Você quer dizer que tinha uma pista bem embaixo de nós e você não falou
nada?
O Instrutor está compreensivelmente chateado, mas
não percebe que ele, não o aluno, é o maior responsável pela comunicação a
bordo não ter funcionado. Embora, historicamente, os acidentes com aviação leve
não sejam analisados desta forma, este é um cenário clássico de falha de
gerenciamento de cabine. O instrutor deixou de utilizar um recurso disponível:
o outro tripulante. O acidente, entretanto, começou muito antes do motor parar.
Um mês atrás, na tentativa de impressionar o aluno com seu grande conhecimento
e autoconfiança, o instrutor criou um clima onde só ele falava e o aluno apenas
ouvia, estabelecendo um desnível de autoridade muito elevado na cabine.
Obviamente, o aluno não vai nem pensar em interferir nos procedimentos do instrutor, porque acha
que ele está sempre certo.
A verdade é que, em se
tratando de coordenação de tripulação, o ambiente na nacele de um Aeroboero ou
de um Cessna 152, em voo de instrução, pode estar muito defasado do que acontece
no cockpit de um jato comercial de
200 toneladas. Mas isto pode ser mudado.
É cada dia mais evidente que
as tripulações bem sucedidas em situações de emergência são aquelas que, além do profundo conhecimento técnico, convivem em um ambiente onde a comunicação é estimulada e aberta, onde existe
troca de informações. O comandante ainda é o responsável pela decisão final,
mas todo o grupo deve colaborar nesta decisão. O comandante deve reconhecer que
ele pode aprender com os demais tripulantes tanto quanto os outros tripulantes
aprenderão com ele. Um dos maiores problemas no gerenciamento de cabine ocorre
quando o comandante não tem confiança na capacidade profissional do outro
tripulante. Em consequência, tende a tomar para si todas as tarefas e fica tão
ocupado em voar o avião que deixa de enxergar o cenário geral, aumentando a
margem de risco. Esta postura dificulta a aplicação dos
conceitos do Gerenciamento de Recursos de Tripulação (CRM – Crew Resource
Management) na relação instrutor-aluno, pois o instrutor pode presumir, por
exemplo, que o aluno dificilmente terá alguma informação válida que ele já não
saiba.
O treinamento do CRM procura
diminuir a incidência de falhas humanas na operação de uma aeronave. Estas
falhas humanas envolvem, entre outros, problemas de comunicação, priorização
inadequada de tarefas na cabine, perda de consciência situacional e, principalmente, falhas de
julgamento e decisão. Como estes problemas são comuns a todo tipo de voo, é
importante que os conceitos do CRM sejam praticados desde o início da
instrução, pois eles serão aplicáveis em toda a vida do piloto. Quanto mais
cedo eles aparecerem na formação, mais facilmente serão absorvidos. Como,
então, se poderiam utilizar os conceitos de gerenciamento de recursos durante a
instrução de voo?
O treinamento de CRM tem várias
vertentes, mas aqui vão apenas algumas sugestões que talvez possam aumentar a eficiência e a segurança tanto da
instrução básica quanto do novo piloto em formação.
- Estabeleça um ambiente de
comunicação aberta na cabine. Um aluno em instrução pode estar ansioso e,
algumas vezes, inseguro. Estas circunstâncias são barreiras à comunicação com o
seu instrutor. Converse com o seu aluno antes da primeira decolagem e torne
claro que você deseja e espera que ele fale sobre suas idéias e dúvidas durante
o voo. Se ele perceber que a velocidade está baixa, ele pode falar. Se observar
algum tráfego, você quer saber. Se o aluno sentir-se desconfortável com alguma
manobra, que fale. O treinamento de CRM sempre enfatiza que, independente do
nível de experiência do outro piloto, ele pode ser o único que tem a informação
necessária para salvar a sua vida. Não tenha receio de deixar o aluno falar.
Isto não diminui a sua autoridade como instrutor, mesmo porque a decisão final
é sempre sua.
- Permita-se estar errado. Instrutores
talvez se sintam constrangidos quando realizam incorretamente alguma manobra.
Afinal, estão ensinando e não poderiam fazer nada menos do que o perfeito.
Mesmo assim, se você entrou baixo em uma aproximação de pane simulada, admita a sua falha
claramente para o aluno e arremeta. A maioria dos acidentes aéreos, seja da
aviação geral ou da aviação comercial de grande porte, é causada por falhas de
julgamento do tripulante. Todos nós cometemos erros, mas dificilmente um
acidente é resultado de uma única decisão incorreta. O grande problema está em
não admitirmos uma falha, pois a probabilidade de tomarmos uma decisão errada em
seguida é muito maior. Não admitir o erro desencadeia uma sequência de
julgamentos falhos. Ensine ao aluno a reconhecer seus erros e tomar
decisões para diminuir as consequências destes erros o mais cedo possível. Não
crie na mente dele a figura do piloto infalível. Isto não existe.
- Delegue. Na medida em que as
habilidades do aluno aumentam, transfira parte da carga de trabalho para ele,
de forma coerente com o seu novo nível de habilidade. Ao dividir as tarefas com
o aluno, você alivia a sua carga de trabalho e pode se concentrar no cenário
geral do voo.
- Procure saber o que o aluno
está pensando. Muitas vezes, um piloto comete erros porque está aplicando
procedimentos a uma situação que não é exatamente a que está acontecendo. Não são
seus procedimentos que estão errados, mas a sua percepção. Peça ao aluno para
ele próprio comentar o que acha que está acontecendo. Isto aumentará a
participação dele, seu aprendizado e facilitará ao instrutor identificar porque
o aluno está errando e orientá-lo. Ao identificar melhor a situação, ele com
certeza vai se desempenhar melhor. Se você apenas criticá-lo, ele não vai
entender porque seus procedimentos não estavam dando certo.
- Resolva os conflitos através
de uma verificação externa. Se o aluno acha que o controlador de voo falou 3.000ft e
você tem certeza que foi 6.000ft, verifique a autorização. Por uma questão de
princípios, não confie apenas na autoridade das pessoas para resolver uma
dúvida, especialmente se for você próprio. Pilotos experientes também cometem
erros. Mesmo que você só erre uma vez em 1000, esta pode ser a vez que você está
errado. É assim que os acidentes acontecem: uma vez em 1000.
- Adote uma norma de
conversação na cabine. As fases de voo de alta carga de trabalho, geralmente
decolagens e aproximações, devem exigir a atenção total do tripulante. As
grandes empresas aéreas adotam a política de “cabine estéril”, onde, abaixo de
10.000ft, não se permite qualquer tipo de atividade ou conversa que não seja
relacionada com a operação da aeronave. Logicamente, não vamos utilizar este
parâmetro para uma instrução básica, mas podemos adaptar esta filosofia à nossa
realidade, identificando as situações que exijam maior atenção do tripulante
como, por exemplo, o circuito de tráfego. Nesta hora, a prioridade é voar o
avião e observar o tráfego. Guarde o “bate-papo” e outras tarefas secundárias
para mais tarde.
- Faça uma avaliação do voo de
forma construtiva. Se o aluno tentou se matar no último pouso e quis te levar
junto, critique o pouso, não o aluno. Se você disser “neste pouso, arredondamos alto e o nariz correu para a esquerda por
causa do vento de través”, isto será bem mais eficiente do que dizer “ô cara, você não consegue mesmo fazer isto
direito, não é?” Lembre que o aluno já estará bastante chateado com a
manobra mal feita. Não piore as coisas ainda mais transformando sua crítica da manobra em um
julgamento pessoal. Esta postura afasta o aluno e diminui o seu rendimento.
- Estimule o aluno a estar sempre à frente do avião durante o voo, a estar preparado para o próximos passos, a se antecipar para os acontecimentos previstos, a verbalizar os procedimentos que serão aplicados e descrever qual será a reação da aeronave. Isto aumentará a consciência situacional dele e permitirá que ele identifique os desvios mais rapidamente e faça as correções necessárias.
- Estimule o aluno a estar sempre à frente do avião durante o voo, a estar preparado para o próximos passos, a se antecipar para os acontecimentos previstos, a verbalizar os procedimentos que serão aplicados e descrever qual será a reação da aeronave. Isto aumentará a consciência situacional dele e permitirá que ele identifique os desvios mais rapidamente e faça as correções necessárias.
Com intensidade cada vez maior, os operadores de
aeronaves têm adotado os conceitos do CRM nas suas operações, com grande
sucesso para a eficiência e segurança. O gerenciamento de cabine tem um dos
seus pilares na comunicação entre os tripulantes. Portanto, não apenas escute,
mas ouça atentamente. Não deixe que a sua vaidade como instrutor afete a
segurança de voo. Tenha o hábito de deixar o aluno falar e perguntar. E reaja
de modo a motivá-lo a falar novamente. Caso contrário, você pode terminar em
frente a um Cessninha acidentado, perguntando: “por que você não me avisou?”.
Muito bom David! Obrigado pelo artigo com certeza muito importante para todos os aviadores.
ResponderExcluirMuito obrigado pelo feedback!
ExcluirMuito bom David! Obrigado pelo artigo com certeza muito importante para todos os aviadores.
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirExcelente contribuição!
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirExcelente texto Comandante!
ResponderExcluirMuito obrigado, Lucas!
ExcluirSeu texto é muito claro e objetivo. Contribui bastante na instrucao de voo.
ResponderExcluirSeu texto está muito claro e objetivo e contribui bastante para melhorar a instrução de voo. Parabens Davi!
ResponderExcluirExcelente 👏👏👏👏
ResponderExcluirDavid, colocações fantásticas!
ResponderExcluirExtremamente pontuais numa fase tão importante neste início de carreira. Parabéns!