Ao longo da história da aviação, pilotos têm sido
sumariamente responsabilizados pela maioria dos acidentes aéreos. Este veredito
instantâneo, normalmente estampado na mídia jornalística nos dias seguintes a
um desastre, pode ofuscar os verdadeiros fatores contribuintes, essenciais
para a prevenção de novas tragédias.
Na visão do grande público, o termo “erro do piloto”
é sinônimo de culpa do piloto, com todas as consequências que isto pode gerar.
Declarar que um acidente ocorreu por erro do piloto atende às questões da
sociedade sobre quem é o responsável e, muitas vezes, gera uma sensação de satisfação sobre as causas do evento. Mas esta é uma afirmação ingênua que não melhora em nada a segurança no
transporte aéreo por um motivo bem simples. O piloto é, na verdade, o elo
final de um complexo sistema de aviação que projeta, fabrica, testa, certifica,
faz manutenção e que normatiza, regula e fiscaliza todas as
inúmeras facetas de sua operação, incluindo treinamento e procedimentos. Por ser o último elo deste complexo sistema,
as ações do piloto são as mais visíveis, induzindo à enganosa percepção que
está nele a principal responsabilidade por um acidente. Quando uma empresa
aérea decide, por exemplo, economizar no treinamento ou falha em supervisionar procedimentos, a consequência vai ser
rotulada como “erro do piloto”, mas as ações gerenciais dificilmente aparecerão
na mídia como causadoras da tragédia.
A focalização no desempenho individual permite que condições latentes prossigam sem serem corrigidas, como aconteceu com o caso do comandante Harry Foote, da empresa inglesa
BOAC. Em outubro de 1952, ele partia do aeroporto de Roma sob uma noite chuvosa
e escura, com um Comet I, o primeiro avião comercial a jato para transporte de
passageiros. Durante a corrida de decolagem, assim que o trem de pouso de nariz
saiu do solo, começou uma vibração característica de estol e a aeronave deixou
de acelerar. O comandante decidiu interromper o procedimento, aplicou os freios
mas não conseguiu parar dentro dos limites da pista, atingindo obstáculos no
prolongamento da cabeceira oposta. Ninguém morreu, mas Foote atraiu
considerável ódio da indústria de transporte aéreo por ter sido o primeiro
piloto a danificar uma aeronave a jato de passageiros. A investigação, em um relatório de quatro páginas, apontou
que o avião havia tocado a cauda na pista durante a corrida de decolagem, por ação incorreta do piloto, que levantara muito o nariz do aparelho. Depois do ocorrido, Foote
foi informado pela companhia que não havia mais lugar para ele entre o seleto
grupo de pilotos de Comet.
De Havilland DH.106 Comet acidentado em Roma, em 1952. |
Investigações posteriores demonstraram
que havia outros fatores presentes. Tendo sido o primeiro avião comercial a
jato, o Comet estava em serviço há menos de seis meses e o comandante Foote
tinha se defrontado com um problema que não ocorria na operação dos aviões a
hélice com asas convencionais. Por causa das novas asas enflechadas, se o nariz
da aeronave fosse levantado muito alto durante a corrida no solo, o excessivo arrasto aerodinâmico impediria que o avião atingisse a velocidade de subida. Decolando
sob uma noite chuvosa, na proa de um terreno montanhoso e escuro, o
comandante Foote não tinha um horizonte visível para orientá-lo sobre a atitude
de arfagem correta e o horizonte artificial não tinha marcações de atitude como hoje. Além disso, como o Comet possuía comandos de voo atuados
hidraulicamente, uma novidade na época, não transmitia ao piloto a mesma
sensibilidade de controle comum aos aviões com acionamento convencional,
levando-o a comandar uma atitude de nariz excessivamente alto.
Menos de cinco meses depois, outro
Comet acidentou-se exatamente nas mesmas circunstâncias, sem deixar
sobreviventes. Agora, a imprensa especializada começava a questionar a
ocorrência de dois eventos tão parecidos em curto espaço de tempo. Desta vez, o
fabricante iniciou uma série de testes sobre o desempenho do avião,
identificando que havia uma margem ínfima acima do estol na decolagem. Isto
resultou em modificação do desenho das asas, tornando a operação bem mais segura. Somente em 1959, sete anos depois da ocorrência em Roma, o fabricante
admitiu que o desenho do avião poderia, de alguma forma, ter contribuído para o
acidente do comandante Foote.
Este episódio clássico é
representativo das implicações que podem atingir tanto um tripulante, como principalmente a própria segurança do transporte aéreo quando se
emitem opiniões apressadas ou se produzem investigações superficiais sobre um evento. A insistente focalização no
desempenho do piloto por parte de alguns países, fabricantes ou empresas de
aviação é resultado da tendência natural de concentrar em uma única pessoa a responsabilidade
por uma tragédia que tenha atraído atenção da opinião pública. Quando fazem
isto, há, até involuntariamente, um certo conforto para todos da comunidade de
aviação, que se mantêm imunes a outras consequências. A empresa aérea aceita o
encargo de pagar indenização pelas perdas (cobertas pelo seguro), mas escapa da
acusação de possuir um programa de treinamento inadequado ou não supervisionar
a padronização de procedimentos de cabine, que poderiam significar alguma
negligência e problemas bem maiores. Os fabricantes evitam as responsabilidades legais da eventual
descoberta de inadequações dos projetos. Os órgãos reguladores do governo não
são criticados por emitirem normas permissivas ou por falta de fiscalização.
Apenas o piloto que cometeu o erro é imputado pelas deficiências do sistema.
Pior do que tudo isso, os reais problemas de segurança de voo não são
corrigidos e voltarão a se repetir.
A segurança do sistema de aviação busca, e deve sempre continuar buscando, uma abordagem sistêmica para a prevenção de acidentes. Todo o processo envolve seres humanos, desde a concepção até a operação da aeronave certificada. Quando o objetivo é a prevenção de acidentes, o processo deve possuir ferramentas robustas para identificar os possiveis erros humanos e criar estratégias para que aqueles erros nao voltem a ocorrer no futuro. Isto sim é trabalhar no interesse público de construir um sistema de transporte aéreo com os mais altos índices de segurança. O ato de atribuir culpa pelo evento a um único elo do sistema simplesmente vai na contramão deste interesse e permite que as falhas do processo não sejam corrigidas e voltem a se repetir.
Nem heróis, nem vilões, pilotos são profissionais envolvidos em cenários pouco conhecidos do público geral, expostos algumas vezes a variáveis imprevisíveis que exigem decisões instantâneas, precisas e vitais, mas que cometem erros como qualquer ser humano. Não se está aqui querendo evitar o uso do rótulo erro do piloto, até porque ele está presente sim na maioria dos eventos. Mas as investigações de segurança de voo não podem perder a profundidade sistêmica, essencial para a prevenção, mesmo quando o erro individual for identificado.
O transporte aéreo público apresenta um alto índice de segurança e confiabilidade. Com mais de 30 milhões de decolagens anuais ao redor do mundo, menos de um milionésimo resultam em acidentes com vítimas, justamente como resultado de toda estrutura de suporte na concepção, fabricação, certificação, operação, manutenção e no gerenciamento da prevenção.
Entretanto, assim como no caso dos Comet’s, anormalidades não previstas causadas por fatores diversos, como novas tecnologias, estarão a exigir um acompanhamento constante das agências reguladoras para rever requisitos de homologação e para adequar o treinamento às novas realidades. Cada vez mais é necessário entender que opiniões e palpites emanados nas poucas horas ou dias que sucedem a um acidente são falhos em sua maioria, possuem o poder de prejudicar reputações e carreiras sem que todos os fatos tenham sido pesquisados e, pior e mais importante, não expõem os verdadeiros problemas de segurança que, pelo interesse público, devem ser tratados como parte de um sistema com todas as suas interações.
Referências:
Statistical
Summary of Commercial Jet Airplanes Accidents - 1959-2017,
Boeing Aircraft Corporation
Boeing Aircraft Corporation
The Naked Pilot, David Beaty
Black Box, Nicholas Faith
www.airdisaster.com
https://www.baaa-acro.com/
https://www.flightsafetyaustralia.com/2019/10/reprise-night-of-the-comet/
https://www.flightsafetyaustralia.com/2019/10/reprise-night-of-the-comet/